Sismólogos propõem uma nova explicação para os terremotos no país
IGOR ZOLNERKEVIC E RICARDO ZORZETTO
IGOR ZOLNERKEVIC E RICARDO ZORZETTO
Em 8 de outubro de 2010 a terra tremeu como jamais se havia visto em Mara Rosa, cidade com 10 mil moradores no norte de Goiás. Passava um pouco das 5 da tarde daquela sexta-feira e as pessoas se preparavam para o fim de semana quando o chão balançou tão intensamente a ponto de se tornar difícil ficar em pé. Árvores chacoalharam, paredes trincaram e telhas despencaram das casas. Menos de um minuto mais tarde, os reflexos desse terremoto de magnitude 5, um dos mais fortes registrados no país nos últimos 30 anos, haviam percorrido 250 quilômetros e alcançado Brasília, onde alguns prédios chegaram a ser desocupados. “Muita gente em Mara Rosa pensou que a terra fosse se abrir e o mundo acabar”, conta Lucas Barros, chefe do Observatório Sismológico da Universidade de Brasília (UnB). Nas semanas seguintes Barros e sua equipe instalaram sismógrafos em Mara Rosa e nos municípios vizinhos para acompanhar a reverberação daquele tremor. Em seis meses, outros 800 sismos, menos intensos, ocorreram ali e ajudaram a determinar a causa direta do desassossego da terra naquela região. Bem abaixo de Mara Rosa, a uns três quilômetros de profundidade, há uma extensa rachadura na crosta terrestre, a camada mais rígida e externa do planeta. E, ao longo dessa fratura que se estende por cinco quilômetros, as rochas haviam se deslocado, fazendo a terra tremer. “Tivemos de fazer audiência pública em Mara Rosa e em Mutunópolis para explicar às pessoas o que estava ocorrendo e o que elas deviam fazer para se proteger”, diz Barros.
A identificação dessa fratura não chegou a surpreender o grupo da UnB. Mara Rosa e outros municípios do norte de Goiás e do sul de Tocantins se encontram em uma região geologicamente instável: a zona sísmica Goiás-Tocantins, que concentra 10% dos terremotos do Brasil. Parte dos geólogos atribui a elevada frequência de tremores nessa área – uma das nove zonas sísmicas delimitadas no país, com 700 quilômetros de comprimento por 200 de largura – à proximidade com o Lineamento Transbrasiliano, uma extensa cicatriz na crosta terrestre que cruza o Brasil e, do outro lado do Atlântico, continua na África. Acredita-se que ao longo do lineamento a crosta seja mais frágil por concentrar blocos rochosos trincados que, sob compressão, se movimentariam mais facilmente produzindo terremotos.
Mas nem todos concordam. Muitas vezes a localização dos tremores não coincide com a desse conjunto de falhas e, em certos trechos dele, nunca se detectaram tremores. Quem duvida da influência direta do lineamento sobre os sismos dessa região aposta em causas mais profundas, como as que acabam de ser identificadas por um grupo de pesquisadores do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas (IAG) da Universidade de São Paulo (USP) a partir do levantamento da espessura da crosta terrestre no país, recém-concluído.
Em um trabalho publicado em fevereiro deste ano naGeophysical Research Letters, o sismólogo Marcelo Assumpção e o geofísico Victor Sacek apresentam uma explicação mais completa – e, para muitos, mais convincente – para a concentração de tremores em Goiás e Tocantins. Em algumas áreas dessa zona sísmica a crosta terrestre é mais fina do que em boa parte do país e encontra-se tensionada pelo peso do manto, a camada geológica inferior à crosta e mais densa do que ela. Medições da intensidade do campo gravitacional nessas áreas de crosta fina indicam que, ali, há um espessamento do manto. Essa combinação faz essas duas camadas de rocha – a crosta e a região superior do manto, que do ponto de vista físico se comportam como uma estrutura única e rígida chamada pelos geólogos de litosfera – vergarem como um galho prestes a se romper. Nessa situação, a litosfera pode trincar como uma régua de plástico que é curvada quando se tenta unir suas extremidades (ver infográfico ao lado).
“A litosfera tende a afundar onde ela é mais densa e a subir onde a densidade é menor”, explica Assumpção. “Essas tendências causam tensões que produzem falhas e, eventualmente, provocam sismos”, completa o sismólogo do IAG, coordenador da Rede Sismográfica do Brasil, que monitora os terremotos no país.
Durante uma conversa em sua sala no início de abril, Sacek, coautor do estudo, pegou um livro de capa flexível para ilustrar o que ocorre no trecho da zona sísmica Goiás-Tocantins onde se encontra Mara Rosa. “Supondo que esse livro represente a litosfera da região, um acréscimo de carga no interior da litosfera, por haver uma proporção maior de rochas do manto [mais densas], vai fazê-la sofrer uma flexura”, explicou, colocando o livro na posição horizontal e pressionando suas laterais, o que o fez se dobrar como se um bloco de pedra estivesse colado à capa inferior. Como resultado, a parte superior é submetida a forças de compressão e a inferior a forças de distensão. “Embora seja rígida, a litosfera tem alguma flexibilidade e resiste até certo ponto à deformação”, diz Sacek. “Mas a partir de determinado limite ela pode vergar e se romper.”
Anos atrás, analisando o mapa da distribuição de sismos no Brasil, Assumpção percebeu que a maioria deles ocorria no trecho de Goiás e Tocantins no qual em 2004 o geofísico Jesús Berrocal, ex-professor da USP, havia identificado uma anomalia gravimétrica. Lá o campo gravitacional é anormalmente elevado para uma região de planalto com altitude média entre 300 e 400 metros. Naquelas terras planas e relativamente baixas – por exemplo, não existem cadeias de montanhas ali – não há excesso de massa sobre a superfície que justifique a flexura da litosfera. Logo, concluiu Assumpção, essa massa só poderia estar embaixo da terra. Provavelmente em regiões profundas como as camadas mais superficiais do manto, uma vez que a crosta só tem 35 quilômetros de espessura.
Mas era preciso verificar se essa ideia fazia sentido e se o espessamento do manto podia, de fato, fazer a litosfera se curvar. Assumpção pediu então a Sacek, especialista em simulações computacionais, que criasse um modelo matemático para representar as camadas geológicas daquela área de Goiás e Tocantins que levasse em conta todas as forças que atuam sobre elas. Sacek desenvolveu um programa incluindo tanto o efeito de forças locais, originadas a poucas dezenas de quilômetros da região dos sismos por diferenças de relevo (vales, rios e morros) e por variações na espessura da crosta, como o de forças regionais, de escala planetária, que ocorrem a milhares de quilômetros de distância, nas bordas dos blocos em que está dividida a litosfera.
Ao unir esses elementos, Sacek identificou uma zona de fragilidade da crosta que coincide com a área de mais sismos em Goiás e Tocantins. Nesse grande bloco, com 200 quilômetros de largura e 5 de profundidade, as forças são intensas a ponto de superar o limite de elasticidade das rochas e fragmentá-las. “Esse modelo explica até a profundidade dos sismos, que em geral ocorrem a menos de cinco quilômetros da superfície”, afirma Sacek.
Ele e Assumpção acreditam que esse mecanismo – a flexura em região de crosta mais fina – pode também ser a causa da elevada frequência de tremores em outras regiões do país, como a bacia do pantanal e a zona sísmica de Porto de Gaúchos, em Mato Grosso, onde em 1955 ocorreu o maior abalo sísmico já registrado no Brasil, com magnitude de 6,2 graus na escala criada por Charles Richter. Os terremotos com magnitude superior a 5 são raros no país – ocorre, em média, um a cada cinco anos. Mas, mesmo fracos, costumam assustar a população, pouco habituada a conviver com os sismos e pouco preparada para lidar com eles. Além de falta de informação sobre como enfrentar os tremores, as residências mais pobres não resistem a abalos pequenos, que causariam poucos danos em uma metrópole. Em 9 de dezembro de 2007, um tremor de magnitude 4,9 danificou várias casas no povoado de Caraíbas, nos arredores de Itacarambi, norte de Minas Gerais, onde a queda de uma parede matou uma criança. “Essa é a única morte direta causada por um terremoto de que se tem notícia no país”, conta o geólogo Cristiano Chimpliganond, da UnB.
A flexura da crosta também explica os terremotos em outra zona sísmica do Brasil: a margem da plataforma continental entre os estados do Rio Grande do Sul e o Espírito Santo. A uma distância que varia de 100 a 200 quilômetros da costa, o fundo do mar sofre um declive abrupto. Nesse degrau, a profundidade do oceano passa de 50 metros para 2 mil metros. Os sedimentos que os rios transportam para o mar se acumulam na extremidade desse degrau, exercendo um peso extra sobre a crosta. Assumpção acredita que essa sobrecarga provoque os sismos detectados nessa região, por mecanismos semelhantes ao que estaria ocorrendo em Goiás e Tocantins. A diferença nesse caso é que o excesso de massa não se encontra sob a crosta, mas sobre ela.
Em um trabalho de 2011, Assumpção e colaboradores da Universidade Estadual Paulista (Unesp), do Instituto de Pesquisas Tecnológicas de São Paulo (IPT) e da Petrobras analisaram um terremoto que ocorreu em abril de 2008 a 125 quilômetros ao sul da cidade de São Vicente, no litoral paulista – e que foi sentido até na cidade de São Paulo. O ponto de origem do tremor foi justamente a extremidade do degrau da plataforma continental e as características de suas ondas sísmicas parecem confirmar a ideia de que foi desencadeado pela sobrecarga de sedimentos.
A elaboração desses modelos sobre a causa dos tremores brasileiros só foi possível graças à descoberta de variações na espessura da crosta terrestre no país. Assumpção e colaboradores da UnB, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e do Observatório Nacional (ON) reuniram informações sobre a espessura da crosta em quase mil pontos na América do Sul, tanto no continente como no oceano – desse total, cerca de 200 medições foram feitas nos últimos 20 anos com financiamento da FAPESP e do governo federal. No mapa que sintetiza esses dados, publicado no Journal of South American Earth Sciences, os pesquisadores chamam a atenção para as regiões onde a crosta é mais espessa ou mais delgada. “A espessura da crosta é um dos parâmetros mais importantes para compreender a tectônica [as forças e os movimentos das camadas geológicas] de uma região”, afirma o sismólogo Jordi Julià, da UFRN.
Essa é a compilação mais completa e detalhada já feita sobre a crosta brasileira. A espessura em todos esses pontos foi obtida a partir da combinação de dados obtidos por três métodos que usam as ondas sísmicas para deduzir a estrutura das camadas geológicas por onde elas passam. O mais preciso deles – e também o mais caro – é a refração sísmica, no qual os pesquisadores registram ao longo de centenas de quilômetros os tremores causados por explosões controladas (ver Pesquisa FAPESP nº 184). Os dois outros métodos se baseiam no monitoramento ao longo de anos dos terremotos que acontecem ao redor do globo.
De modo geral, a crosta no Brasil tem espessura semelhante à dos outros continentes – em média de 40 quilômetros, medidos a partir do nível do mar. Há algumas regiões no país, porém, em que a crosta chega a ser mais fina do que 35 quilômetros. A existência de uma delas – uma faixa de quase mil quilômetros que vai do pantanal, em Mato Grosso do Sul, a Goiás e Tocantins – ainda não está bem delineada, porque há poucas informações sísmicas disponíveis sobre a região. Já no Nordeste, onde foi feita a maioria dos experimentos de refração sísmica pela equipe de Reinhardt Fuck, da UnB, a incerteza é menor.
Ali se localiza a área mais vasta do território nacional com crosta menos espessa: a província de Borborema, bloco rochoso sobre o qual se assentam quase todos os estados do Nordeste, a região com maior frequência de tremores no país. Em alguns pontos dessa região, a crosta tem menos de 30 quilômetros. Esse afinamento parece ter ocorrido entre 136 milhões e 65 milhões de anos atrás, período em que a América do Sul se separou da África.
Um dos recordes de espessura está sob a floresta amazônica, na fronteira entre os estados de Roraima, Amazonas e Pará. Com até 45 quilômetros de espessura, esse é um dos pedaços da crosta mais antigos do Brasil, com mais de 2,5 bilhões de anos. “Essas regiões mais antigas tendem a ter crosta mais espessa”, diz Assumpção.
Mas o trecho de crosta mais espessa do país se encontra em uma região relativamente jovem, a bacia do Paraná, que começou a se formar há 460 milhões de anos. No interior de São Paulo, próximo ao rio Paraná, a crosta alcança 46 quilômetros de espessura. Assumpção propõe duas possíveis razões para esse espessamento. A primeira, sugerida por diversos estudos, é que sob a bacia do Paraná haveria um bloco de crosta mais antiga, com bilhões de anos de idade, batizado de cráton do Paranapanema. A segunda tem a ver com a intensa atividade vulcânica ali há 130 milhões de anos. Por algum motivo que não se conhece, o manto abaixo da bacia do Paraná se tornou anormalmente quente, fenômeno que os geólogos chamam de pluma térmica. Essa pluma teria fundido parcialmente as camadas profundas da Terra, gerando magmas de composição basáltica que se derramaram sobre a superfície e originaram uma das maiores províncias vulcânicas do planeta. Essas rochas geraram as faixas de terra roxa, um solo bastante fértil. Parte do material originado no processo permaneceu lá embaixo e, quando o manto esfriou, se soldou à porção inferior da crosta, aumentando sua espessura.
Com pesquisadores do Chile e da China, Assumpção expandiu o mapeamento da crosta para a cordilheira dos Andes. Sob essa cadeia de montanhas, a espessura da crosta varia de 35 quilômetros, na fronteira do Peru com o Equador, a 75 quilômetros, no altiplano boliviano. Essa espessura máxima é semelhante à observada em outras regiões montanhosas relativamente jovens, como o Himalaia. Em geral, há uma correlação direta entre a altitude de um terreno e a espessura da crosta. “Quanto mais alta a topografia, mais espessa é a crosta”, explica Assumpção. “Para altitudes superiores a 3 mil metros, o normal é a crosta chegar a 70 quilômetros.”
Mas há exceções. No norte da Argentina, onde os Andes se erguem a mais de 4 mil metros de altura, a crosta tem menos de 55 quilômetros de espessura. Novamente, os pesquisadores imaginam duas explicações. Ou a crosta já era anormalmente fina desde antes da formação dos Andes ou, há 4 milhões de anos, ela se tornou tão espessa e quente que perdeu parte de suas camadas mais profundas, fenômeno chamado delaminação.
Já na fronteira do Peru com o Equador, onde a altitude supera os 3 mil metros, sua espessura é de apenas 35 quilômetros. Nesse caso, a crosta parece ser sustentada pelo movimento das correntes das camadas mais profundas do manto, que, embora sejam rochas, se comportam como um líquido extremamente viscoso no tempo geológico – ele flui alguns centímetros por ano. A força dessas correntezas ascendendo são capazes de suspender a crosta, acrescentando de um a dois quilômetros na altura das montanhas. O inverso também pode acontecer. O fluxo descendente pode puxar para baixo a crosta em algumas regiões, como Sacek e Naomi Ussami, geofísica da USP, observaram na bacia de Marañon, entre o Equador, o Peru e a Colômbia.
Apesar das duas décadas de trabalho, as pesquisas nessa área ainda estão atrasadas na América do Sul. Os Estados Unidos e a Europa já dispunham de mapas detalhados da espessura da crosta no final dos anos 1990. “O avanço do mapeamento da crosta no mundo varia segundo a renda per capita dos países”, diz Assumpção. “Só estamos melhores do que a África.”
No Brasil, as principais instituições de pesquisa da área se uniram há dois anos e criaram a Rede Sismográfica do Brasil, que dispõe de 50 estações sismológicas e pretende chegar a 80. Assim, os pesquisadores esperam monitorar melhor o país e aumentar a resolução do mapa. Quanto mais terremotos se observarem, mais detalhes da espessura da crosta poderão ser identificados. E, com mais detalhes, é possível criar modelos que permitam predizer com mais precisão as áreas sob risco de tremores de maior magnitude. “A sismologia não consegue prever terremotos e, mesmo que conseguisse, não poderia evitá-los”, diz Barros. “Por isso, temos de aprender a conviver com eles e nos proteger deles.”
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