A expressão “democracia direta” e o horizonte (imaginário) de participação política historicamente vinculado a ela reingressaram fortemente no discurso público italiano graças ao formidável aspirador — e, ao mesmo tempo, anestesiador — de movimentos sociais representado pelo “Movimento 5 Estrelas” (M5S), que canalizou as mais diversas mobilizações da última década numa narrativa consoladora do “povo virtuoso” em luta irredutível contra a “casta política” e o seu principal articulador novecentista — a forma-partido —, respondendo com um discurso abrangente, tradicionalmente ni droite ni gauche, às demandas difusas de transformação social e política [1].
Gian Luca Fruci
Gian Luca Fruci
Na Itália, onde a crítica ao parlamentarismo do período liberal tem como correspondente simétrico a condenação à partidocracia da época republicana, o nexo entre contrapolítica, apelo ao povo (na forma sofisticada da “sociedade civil” ou na versão comum das “pessoas”) e democracia direta aparece, se possível, ainda mais forte, emergindo recorrentemente em diversos momentos de crise da história pós-unitária [4]. Isto é visível precisamente na trajetória editorial do principal texto teórico que, na Península, se encarregou de pleitear a causa do diretismo, a saber, o pequeno livro do intelectual republicano-socialista Giuseppe Rensi, publicado pela primeira vez em 1902, na Suíça, logo em seguida à crise de final do século, com o título Os antigos regimes e a democracia direta. Reeditada em 1926 com o titulo abreviado A democracia direta, após a tomada definitiva do poder pelo fascismo, que o autor havia considerado de maneira favorável por um breve momento, esta obra foi, por fim, republicada pela editora Adelphi, sob os cuidados de Nicola Emery, tanto em 1995 quanto em 2010, concomitantemente com duas agudas — e, em muitos aspectos, análogas — conjunturas de contestação do sistema político e, consequentemente, da legitimidade da democracia representativa republicana fundada entre 1946 e 1948 [5].
Isto ocorre em perfeita continuidade com a história da democracia direta, que é principalmente uma narrativa (in)finita, reapresentada pelos seus diferentes speakers como sempre igual a si mesma e colocada constantemente em outro lugar, temporal ou espacial (a Atenas de Péricles, a Comuna de Paris, a Rússia dos Sovietes, os Cantões helvéticos daLandsgemeinde, o Chiapas do subcomandante Marcos, o blog de Grillo). Em suma, o não-lugar representado pela rede, com seus potenciais desenvolvimentos tecnológicos, assume hoje, para Grillo e Casaleggio, uma função mitopoética análoga à das Comunas medievais para Jean Charles Léonard Simonde de Sismondi (Histoire des républiques italiennes du Moyen-âge, 1807-1808), ou da ilha de Pasquale Paoli para Jean-Jacques Rousseau (Projet de Constituition pour la Corse, 1765). Hoje como ontem, o discurso da democracia direta se revela, portanto, eminentemente polêmico e antinômico, além de imaginário. Sua força não deriva da credibilidade dos modelos propostos ou mesmo só evocados. Deve seu sucesso quase exclusivamente à realidade que denuncia e proclama querer mudar profundamente, e extrai sua legitimação de uma ideia teleológica do desenvolvimento histórico, baseada, no século XIX, num racionalismo político de derivação revolucionária e, hoje, num superinvestimento nos poderes taumatúrgicos da “Rede”.
Entretanto, resulta paradoxal o fato de que o revival da democracia direta e a proposta de um paradigma de participação absoluta e contínua ressurjam — não apenas na Itália —precisamente quando a filosofia e a historiografia política contemporânea refletem sobre a originalidade e o perfil autônomo (e de modo algum derivado) da democracia representativa, a partir de autores liberais radicais como Condorcet e Thomas Paine, o qual, em 1792, escrevia significativamente que, “se tivesse tido a representação”, Atenas teria “superado sua própria democracia” [8]. Faz tempo que, no plano teórico e também no histórico, a dicotomia entre a democracia dos antigos e a dos modernos pode-se dizer, de fato, superada em favor de uma ideia mais articulada da representação, que não se exaure no momento eleitoral, mas se configura como um processo político complexo, capaz de integrar uma pluralidade de arenas participativas e estabelecer um canal contínuo de comunicação, condicionamento e vigilância entre representados e representantes [9]. Nesse sentido, é necessário trabalhar e inovar com fantasia criadora no plano institucional, tendo em conta que a democracia, antes de ter uma história, é ela própria uma experiência histórica e, portanto, um laboratório conceitual e prático do nosso presente a que se deve recorrer inventivamente para responder às tensões e às crises (velhas e novas) que apresentam os sistemas democráticos desde as próprias origens [10].
Gian Luca Fruci é pesquisador de História Política da Universidade de Pisa. Artigo publicado em Italianieuropei, 5/6, 2013, p. 40-4.
Notas
[1] Sobre esta análise provocadora e extravagante, ver Ming, Wu, “Il Movimento 5 estelle ha difeso il sistema”, Internazionale, 25 fev. 2013, disponível em www.internazionale.it/news/italia/2013/02/26/il-movimento-5-stelle-ha-difeso-il-sistema-2; Ciccarelli, R., “Intervista a Wu Ming. Grillo cresce sulle macerie dei movimenti”, Il Manifesto, 1º mar. 2013. Para uma investigação ampla, mas interpretativamente mais asséptica, ver Diamanti, I., Natale, P. (orgs.), “Grillo e il Movimento 5 Stelle. Analisi di un ‘fenomeno’ politico”, Comunicazione politica, 1/2013; Biorcio, R., Natali, P., Politica a 5 stelle. Idee, storia e strategie del movimento di Grillo, Milão, Feltrinelli, 2013; Corbetta, P., Gualmini, E. (orgs.),Il partito di Grillo, Bolonha, Il Mulino, 2013.
[2] Rosanvallon, P., La démocratie inachevée. Histoire de la souveraineté du peuple en France. Paris, Gallimard, 2000, p. 157-79.
[3] Fruci, G. L., “La banalità dela democrazia. Manuali, catechismi e instruzioni elettorali per il primo voto a suffragio universale in Italia e in Francia (1848-49)”, in Romanelli, R. (org.), “A scuola di voto. Catechismi, manuali e istruzioni elettorali fra Otto e Novecento”,Dimensioni e problemi dela richerca storica, 1/2008, p. 17-46.
[4] Lupo, S., “Il mito dela società civile. Retoriche antipolitiche nella crisi dela democrazia italiana”, Meridiana. Revista di storia e scienze sociale, 38-39/2000, p. 17-43; idem, Partito e antipartito. Uma storia politica dela prima Republica (1946-1978), Roma, Donzelli, 2004; idem,Antipartiti. Il mito dela nuova politica nella storia dela Republica (prima, seconda, terza), Roma, Donzelli, 2013.
[5] Rensi, G., Gli anciens régimes e la democrazia direta. Saggio storico politico, Bellinzona, Colombi, 1902; idem, La democracia direta, Roma, Libreria politica moderna, 1926. A obra foi também reeditada entre 1943 e 1945, respectivamente em Roma (pela renascida Libreria politica moderna, com o titulo Forme di governo del passato e dell’avvenire) e Milão (pela Libreria editrice milanese, com o titulo Governi d’ieri e di domani).
[6] Lupo, S., “Il mito...”, cit., p. 21-2
[7] Casaleggio, G., Grillo, B., Siamo in guerra. Per una nuova política, Milão, Chiarelettere, 2011, p. 7-15, 61-8; Fo, D., Casaleggio, G., Grillo, B., Il grillo canta sempre al tramonto. Dialogo sull’Italia e il Movimento 5 Stelle, Milão, Chiarelettere, 2013, p. 84-96.
[8] Citado em Urbinati, N., Lo scettro senza il re. Participazione e rappresentanza nelle democrazie moderne, Roma, Donzelli, 2009, p.11.
[9] Rosanvallon, P., La légitimité démocratique. Imparcialité, réflexivité, proximité, Paris, Seuil, 2008; Urbinati, N., Democrazia rappresentativa. Sovranità e controlo dei poteri, Roma, Donzelli, 2010.
[10] Rosanvallon, P., “L’universalisme démocratique: histoire et problèmes”, Esprit, jan. 2008, p. 104-20.
Tradução: Alberto Aggio
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