domingo, 4 de agosto de 2013

A história (in)finita da democracia direta

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A expressão “democracia direta” e o horizonte (imaginário) de participação política historicamente vinculado a ela reingressaram fortemente no discurso público italiano graças ao formidável aspirador — e, ao mesmo tempo, anestesiador — de movimentos sociais representado pelo “Movimento 5 Estrelas” (M5S), que canalizou as mais diversas mobilizações da última década numa narrativa consoladora do “povo virtuoso” em luta irredutível contra a “casta política” e o seu principal articulador novecentista — a forma-partido —, respondendo com um discurso abrangente, tradicionalmente ni droite ni gauche, às demandas difusas de transformação social e política [1].

Gian Luca Fruci
A hibridização entre retórica antipolítica, ou mais precisamente contra a política, e diretismo procedimental é, por sua vez, um desdobramento fundamental da constelação discursiva que contesta, desde as origens, a democracia representativa, contrapondo a esta a simplicidade e a evidência “objetiva” de soluções alternativas baseadas na ausência de delegação e no envolvimento imediato (e contínuo) dos cidadãos na gestão da coisa pública. Na França, logo após a desilusão com a primeira experiência europeia de sufrágio universal direto (masculino)  que levou, em abril de 1848, à escolha de uma Assembleia Constituinte moderada e, em maio de 1849, ao triunfo eleitoral dos conservadores , o universo republicano derrotado mergulhou, entre a primavera de 1850 e o verão de 1851 (portanto, bem antes do golpe de Estado do príncipe-presidente Luís Napoleão Bonaparte), num amplo debate que identificou aquilo que, na linguagem da época, se chamava de “representomania” como principal responsável por um resultado considerado não apenas imprevisto, mas também (e sobretudo) inconcebível do exercício eleitoral da soberania popular. Plus d’élections, plus de représentants du peuple intitulava-se significativamente um opúsculo, que reapresentava a velha ideia de sorteio dos deputados, enquanto naquele contexto, não à toa, apareceram pela primeira vez expressões como “governo direto”, “legislação direta” e “democracia direta”, desconhecidas do vocabulário político da Revolução Francesa e da primeira metade do século XIX [2].
Termos sinônimos utilizados para imaginar um novo regime político, baseado fundamentalmente na inversão do pressuposto conceitual (e funcionalista) que sustentara até 1848 a reivindicação do voto universal: o “povo eleitor” reunido em assembleia não é capaz de se autogovernar, mas sabe perfeitamente escolher os melhores e os mais sábios como governantes [3]. De fato, a filosofia de governo direto prevê que o “povo eleitor”, considerado propenso a se enganar e a ser enganado quanto às pessoas, seja substituído pelo “povo legislador”, que, graças ao seu bom senso, não pode se equivocar quando discute ideias, princípios, interesses, e é levado naturalmente (e facilmente) para a deliberação sobre textos e quadros normativos. A formulação da democracia direta se coloca, portanto, no quadro de uma hipersimplificação do político, que se recusa a pensar não só a representação, mas também (e sobretudo) o poder executivo, denunciado como usurpador da soberania popular, e no âmbito de uma harmonia destituída de conflito, que subentende a unanimidade em nome da obviedade objetiva das decisões.
Na Itália, onde a crítica ao parlamentarismo do período liberal tem como correspondente simétrico a condenação à partidocracia da época republicana, o nexo entre contrapolítica, apelo ao povo (na forma sofisticada da “sociedade civil” ou na versão comum das “pessoas”) e democracia direta aparece, se possível, ainda mais forte, emergindo recorrentemente em diversos momentos de crise da história pós-unitária [4]. Isto é visível precisamente na trajetória editorial do principal texto teórico que, na Península, se encarregou de pleitear a causa do diretismo, a saber, o pequeno livro do intelectual republicano-socialista Giuseppe Rensi, publicado pela primeira vez em 1902, na Suíça, logo em seguida à crise de final do século, com o título Os antigos regimes e a democracia direta. Reeditada em 1926 com o titulo abreviado A democracia direta, após a tomada definitiva do poder pelo fascismo, que o autor havia considerado de maneira favorável por um breve momento, esta obra foi, por fim, republicada pela editora Adelphi, sob os cuidados de Nicola Emery, tanto em 1995 quanto em 2010, concomitantemente com duas agudas  e, em muitos aspectos, análogas  conjunturas de contestação do sistema político e, consequentemente, da legitimidade da democracia representativa republicana fundada entre 1946 e 1948 [5].
Não se sabe se o ex-cômico Beppe Grillo e o empresário Gianroberto Casaleggio alguma vez leram Rensi, que terminou sua carreira acadêmica como professor de Filosofia Moral na Universidade de Gênova, mas deve-se sublinhar que o discurso antipartido de ambos é perfeitamente simétrico à critica radical dirigida à classe política, que Rensi retomava, com o próprio conceito, de Gaetano Mosca, estudioso conservador e nostálgico da Direita histórica e inquiridor polêmico “de uma política expressiva não mais da sociedade civil, mas de si mesma  ou seja, da classe que vive de política” [6]. Nos seus textos programáticos, os dois colíderes do Movimento 5 Estrelas profetizam o advento iminente da democracia direta, apresentando-o como um produto inevitável da revolução digital em curso, que tornaria possível a realização virtual de um horizonte utópico de expectativas que perpassa toda a história da democracia moderna: a simultânea e imediata participação de todo o corpo político nas deliberações numa unidade de tempo e lugar, segundo o modelo mítico (e mitificado) da democracia clássica [7]. De fato, foi a partir da inviabilidade desta aspiração em espaços estatais de grandes dimensões que surgiu historicamente o discurso minimalista a favor da democracia representativa, apresentada como sucedâneo da desejada, mas irrealizável, democracia absoluta dos antigos. No imaginário “cinco estrelas”, a sacralização da “Rede” (grafada, com deferência, com “r” maiúsculo) se configura, assim, como a solução prática de uma aporia constitutiva da tradução procedimental da soberania popular, que parece tão mais eficiente quanto mais olha para o passado e se projeta no futuro, deixando indefinida e problemática sua concretização no presente.
Isto ocorre em perfeita continuidade com a história da democracia direta, que é principalmente uma narrativa (in)finita, reapresentada pelos seus diferentes speakers como sempre igual a si mesma e colocada constantemente em outro lugar, temporal ou espacial (a Atenas de Péricles, a Comuna de Paris, a Rússia dos Sovietes, os Cantões helvéticos daLandsgemeinde, o Chiapas do subcomandante Marcos, o blog de Grillo). Em suma, o não-lugar representado pela rede, com seus potenciais desenvolvimentos tecnológicos, assume hoje, para Grillo e Casaleggio, uma função mitopoética análoga à das Comunas medievais para Jean Charles Léonard Simonde de Sismondi (Histoire des républiques italiennes du Moyen-âge, 1807-1808), ou da ilha de Pasquale Paoli para Jean-Jacques Rousseau (Projet de Constituition pour la Corse, 1765). Hoje como ontem, o discurso da democracia direta se revela, portanto, eminentemente polêmico e antinômico, além de imaginário. Sua força não deriva da credibilidade dos modelos propostos ou mesmo só evocados. Deve seu sucesso quase exclusivamente à realidade que denuncia e proclama querer mudar profundamente, e extrai sua legitimação de uma ideia teleológica do desenvolvimento histórico, baseada, no século XIX, num racionalismo político de derivação revolucionária e, hoje, num superinvestimento nos poderes taumatúrgicos da “Rede”.
Entretanto, resulta paradoxal o fato de que o revival da democracia direta e a proposta de um paradigma de participação absoluta e contínua ressurjam  não apenas na Itália precisamente quando a filosofia e a historiografia política contemporânea refletem sobre a originalidade e o perfil autônomo (e de modo algum derivado) da democracia representativa, a partir de autores liberais radicais como Condorcet e Thomas Paine, o qual, em 1792, escrevia significativamente que, “se tivesse tido a representação”, Atenas teria “superado sua própria democracia” [8]. Faz tempo que, no plano teórico e também no histórico, a dicotomia entre a democracia dos antigos e a dos modernos pode-se dizer, de fato, superada em favor de uma ideia mais articulada da representação, que não se exaure no momento eleitoral, mas se configura como um processo político complexo, capaz de integrar uma pluralidade de arenas participativas e estabelecer um canal contínuo de comunicação, condicionamento e vigilância entre representados e representantes [9]. Nesse sentido, é necessário trabalhar e inovar com fantasia criadora no plano institucional, tendo em conta que a democracia, antes de ter uma história, é ela própria uma experiência histórica e, portanto, um laboratório conceitual e prático do nosso presente a que se deve recorrer inventivamente para responder às tensões e às crises (velhas e novas) que apresentam os sistemas democráticos desde as próprias origens [10].
Gian Luca Fruci é pesquisador de História Política da Universidade de Pisa. Artigo publicado em Italianieuropei, 5/6, 2013, p. 40-4.
Notas
[1] Sobre esta análise provocadora e extravagante, ver Ming, Wu, “Il Movimento 5 estelle ha difeso il sistema”, Internazionale, 25 fev. 2013, disponível em www.internazionale.it/news/italia/2013/02/26/il-movimento-5-stelle-ha-difeso-il-sistema-2; Ciccarelli, R., “Intervista a Wu Ming. Grillo cresce sulle macerie dei movimenti”, Il Manifesto, 1º mar. 2013. Para uma investigação ampla, mas interpretativamente mais asséptica, ver Diamanti, I., Natale, P. (orgs.), “Grillo e il Movimento 5 Stelle. Analisi di un ‘fenomeno’ politico”, Comunicazione politica, 1/2013; Biorcio, R., Natali, P., Politica a 5 stelle. Idee, storia e strategie del movimento di Grillo, Milão, Feltrinelli, 2013; Corbetta, P., Gualmini, E. (orgs.),Il partito di Grillo, Bolonha, Il Mulino, 2013.
[2] Rosanvallon, P., La démocratie inachevée. Histoire de la souveraineté du peuple en France. Paris, Gallimard, 2000, p. 157-79.
[3] Fruci, G. L., “La banalità dela democrazia. Manuali, catechismi e instruzioni elettorali per il primo voto a suffragio universale in Italia e in Francia (1848-49)”, in Romanelli, R. (org.), “A scuola di voto. Catechismi, manuali e istruzioni elettorali fra Otto e Novecento”,Dimensioni e problemi dela richerca storica, 1/2008, p. 17-46.
[4] Lupo, S., “Il mito dela società civile. Retoriche antipolitiche nella crisi dela democrazia italiana”, Meridiana. Revista di storia e scienze sociale, 38-39/2000, p. 17-43; idem, Partito e antipartito. Uma storia politica dela prima Republica (1946-1978), Roma, Donzelli, 2004; idem,Antipartiti. Il mito dela nuova politica nella storia dela Republica (prima, seconda, terza), Roma, Donzelli, 2013.
[5] Rensi, G., Gli anciens régimes e la democrazia direta. Saggio storico politico, Bellinzona, Colombi, 1902; idem, La democracia direta, Roma, Libreria politica moderna, 1926. A obra foi também reeditada entre 1943 e 1945, respectivamente em Roma (pela renascida Libreria politica moderna, com o titulo Forme di governo del passato e dell’avvenire) e Milão (pela Libreria editrice milanese, com o titulo Governi d’ieri e di domani).
[6] Lupo, S., “Il mito...”, cit., p. 21-2
[7] Casaleggio, G., Grillo, B., Siamo in guerra. Per una nuova política, Milão, Chiarelettere, 2011, p. 7-15, 61-8; Fo, D., Casaleggio, G., Grillo, B., Il grillo canta sempre al tramonto. Dialogo sull’Italia e il Movimento 5 Stelle, Milão, Chiarelettere, 2013, p. 84-96.
[8] Citado em Urbinati, N., Lo scettro senza il re. Participazione e rappresentanza nelle democrazie moderne, Roma, Donzelli, 2009, p.11.
[9] Rosanvallon, P., La légitimité démocratique. Imparcialité, réflexivité, proximité, Paris, Seuil, 2008; Urbinati, N., Democrazia rappresentativa. Sovranità e controlo dei poteri, Roma, Donzelli, 2010.
[10] Rosanvallon, P., “L’universalisme démocratique: histoire et problèmes”, Esprit, jan. 2008, p. 104-20.
Tradução: Alberto Aggio

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