quinta-feira, 13 de novembro de 2014

Corem diante desta negra, doutores! Ela tem o que os senhores perderam


24 de agosto de 2013 | 20:08 Autor: Fernando Brito
“Somos médicos por vocação, não nos interessa um salário, fazemos por amor”, afirmou Nelson Rodrigues, 45.
“Nossa motivação é a solidariedade”, assegurou Milagros Cardenas Lopes, 61.
“Viemos para ajudar, colaborar, complementar com os médicos brasileiros”, destacou Cardenas em resposta à suspeita de trabalho escravo. “O salário é suficiente”, complementou Natasha Romero Sanches, 44.
Poucas frases, mas que soam como se estivessem sendo ditas por seres de outro planeta no Brasil que vivemos.
O que disseram os primeiros médicos cubanos do grupo, que vêm para servir onde médicos brasileiros não querem ir, deveria fazer certos dirigentes da medicina brasileira se reduzirem à pequenez de seus sentimentos e à brutalidade de suas vidas, de onde se foi, há muito tempo, qualquer amor à igualdade essencial entre todos os seres humanos.
Porque gente que não se emociona com o sofrimento e a carência de seus semelhantes, gente que se formou, muitas vezes, em escolas de medicina pagas com o imposto que brasileiros miseráveis recolheram sobre sua farinha, seu feijão, sua rala ração, gente que já viu seus concidadãos madrugando em filas, no sereno, para obter um simples atendimento, gente assim não é civilizada, não importa quão bem tratadas sejam suas unhas, penteados seus cabelos e reluzentes seus carros.
Diante desta negra aí da foto, que para vocês só poderia servir para lavar suas roupas e pajear seus ricos filhinhos, criados para herdar o “negócio” dos pais, vocês não passam de selvagens, de brutos.
Vocês podem saber quais são as drogas mais recentes, que aprenderam  nos congressos realizados em locais turísticos, custeadas por laboratórios que lhes dão as migalhas do lucro bilionário que têm ao vender remédios. Vocês podem conhecer o último e caro exame de medicina nuclear disponível na praça para quem pode pagar. Vocês podem ser ricos, ou até acharem que são, porque na verdade não passam de uma subnobreza deplorável, que acha o máximo ir a Miami.
Mas vocês são lixo perto dessa negra, a Doutora – sim, Doutora, negra, negrinha assim! – Natasha, eu lhes garanto.
Sabem por quê? Porque ela é capaz de achar que aquilo que faz é mais importante que aquilo que ganha, desde que seja suficiente para viver com dignidade material. Porque a dignidade moral ela tem, em quantidade suficiente para saber que é uma médica, por cem, mil ou um milhão de dólares.
Mas a dignidade, doutores, os senhores já perderam. E talvez nunca mais voltem a ter, porque isso não se compra, não se vende, não se aluga, como muitos fazem, para manter o status de pertencerem ao corpo clínico de um hospital, com seus colegas para que dêem o plantão em seus lugares.
Os senhores não são capazes de fazer um milésimo do que ela faz pelos seres humanos, desembarcar sob sua hostilidade, em um país estrangeiro, para tratar da gente pobre que os senhores não se dispõem a cuidar nem querem deixar que ela cuide.
Os senhores não gritaram, não xingaram, nem ameaçaram com polícia ao Roger Abdelmassih, o estuprador, nem contra o infeliz que extorquiu R$ 1.200,00 para fazer o parto de uma adolescente pobre, nem contra os doutores dos dedos de silicone, nem contra os espertalhões da maternidade paulista, cuja única atividade era bater o ponto.
Eles não os ameaçaram, ameaçaram apenas aos pobres do Brasil.
Estes aí, sim, estes os ameaçam. Ameaçam a aceitação do que vocês se tornaram, porque deixaram que a aspiração normal e justa de receber por seu trabalho se tornasse maior do que a finalidade deste próprio trabalho, porque o trabalho é um bem social e coletivo, ou então vira mero negócio mercantil.
É isto que estes médicos cubanos representam de ameaça: reduzir o egoísmo, o consumismo, o mercantilismo ao seu tamanho, a algo que não é e nem pode ser o tamanho da civilização humana.
Aliás, é isso que Cuba, há quase 55 anos, representa.
Um país minúsculo, cheio de carências, que é capaz de dar a mão dos médicos a este gigante brasileiro.
E daí que eles exportem médicos como fonte de receita? Nós não exportamos nossos meninos para jogar futebol? O que deu mais trabalho, mais investimento, o que agregou mais valor a um país: escolas de medicina ou esteiras rolantes para exportar seus minérios?
É por isso que o velhíssimo Fidel Castro encarna muito mais a juventude que estes yuppies coxinhas, cuja vida sem causa cabe toda em um cartão de crédito.
Eu agradeço à Doutora Natasha.
Ela me lembrou, singelamente, que o coração é algo muito maior do que aquele volume que aparece, sombrio, nas tantas ressonâncias, tomografias e cateterismos por que passei nos últimos meses.
Ele é o centro do progresso humano, mais que o cérebro, porque é ele quem dá o norte, o sentido, o rumo dos pensamentos e da vida.
Porque, do contrário, o saber vira arrogância e os sentimentos, indiferença.
E o coração, como na música de Mercedes Sosa, é apenas una mala palabra

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