sexta-feira, 21 de novembro de 2014

Presa política da ditadura acredita que Comissão Nacional da Verdade vai recompor a história


Posted: 20 Nov 2014 04:00 AM PST
Ditadura
A sociedade brasileira ainda contabiliza, 50 anos após a instauração da ditadura militar no Brasil, os danos que esse regime de exceção causou na política, economia, cultura e relações sociais do País. Na terceira matéria da série “Ditadura: Contar para não voltar”, detalharemos a dimensão humana desse conflito no Brasil, que pode ser percebida na história da jornalista Rose Nogueira, presa pelo Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI), em 1969.
Rose teve suas convicções políticas formadas por influência da avó – operária que trabalhava 14 horas por dia em uma fábrica de tecidos na capital paulista, e que via na criação da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), em 1943, uma garantia importante para a qualidade de vida dos trabalhadores – e pelos princípios do cristianismo e seus preceitos de caridade, bondade e solidariedade. “Para mim, as coisas sempre foram mais ou menos assim, precisávamos lutar para conseguir as coisas, pelo bem de todos”, afirma.

“A gente sabia que tinha perseguição política, mas foi ali [após o AI-5] que começou a repressão pesada, da tortura como política de Estado”, relatou Rose. Na foto, ela faz discurso na Assembleia Legislativa de São Paulo, ao receber o título de Cidadã Paulistana. Foto: arquivo pessoal.
“A gente sabia que tinha perseguição política, mas foi ali [após o AI-5] que começou a repressão pesada, da tortura como política de Estado”, relatou Rose. Na foto, ela faz discurso na Assembleia Legislativa de São Paulo, ao receber título de cidadã paulistana. Foto: arquivo pessoal.
A jornalista lembra que no fim dos anos 1960 era repórter do Jornal Folha da Tarde, quando se casou com um dos editores da publicação, o jornalista Luiz Roberto Clauset. Nessa época, conhecidos do casal ligados à Aliança Libertadora Nacional (ALN) –organização política de esquerda que lutava contra a ditadura militar – pediram a Rose e a Luiz Roberto para utilizar o apartamento do casal para realização de reuniões políticas. Em 1969, Rose estava grávida do seu único filho.
“Nós tínhamos uma vida legal, trabalhávamos no jornal e nos pediram para usar a nossa casa justamente porque ninguém desconfiaria. Nós dois não participávamos das reuniões, ficávamos no quarto, dávamos o apoio logístico. Eram reuniões do pessoal da ALN com padres dominicanos. O Marighella esteve lá algumas vezes”, disse ela em referência ao líder da ALN e um dos principais organizadores da resistência contra o regime militar no Brasil. Carlos Marighella chegou a ser o homem mais procurado do Brasil pela ditadura e foi assassinado por membros do regime militar em 1969.
Prisão 
Rose Nogueira e o marido foram presos na madrugada do dia 4 de novembro de 1969. “No mesmo dia em que morreu Marighela”, lembra. Ela conta que tinha acabado de ter seu filho: Carlos Guilherme Clauset, hoje com 45 anos.
“Eles chegaram lá com uns dez homens, quebrando tudo, gritando, a gente ficou com arma na cabeça, era o pessoal do Esquadrão da Morte. Quando viram o meu filho, que tinha um mês, eles gritaram falando que iam mandar o menino para o juizado de menores. Foi aí que eu enfrentei e disse que com o meu filho no juizado de menores eu não iria. Eu não sei como eu tive coragem, acho que só o instinto maternal faz isso com a gente”, afirma.
Rose lembra que desafiar os militares os irritou profundamente, e que eles, a todo o momento, ameaçavam usar a violência. No entanto ela afirma que com a postura dela, o grupo liderado pelo delegado Fleury acabou concordando em deixar o menino com a família da jornalista.
“Eles levaram o meu marido e eu fiquei a noite lá com dois policiais na minha casa, amarrada, eles não me deixavam ficar com o meu filho. Eu fiquei amarrada na sala e o menino ficou no quarto. Eles só me deixavam dar de mamar quando o bebê chorava muito. Eles acabaram concordando em deixar o menino na casa da minha sogra, que era caminho.”
De acordo com Rose, quando ela chegou à Delegacia de Ordem Política e Social (Dops), havia muita gente presa. “A gente sabia que tinha perseguição política, mas foi ali que começou a repressão pesada, da tortura como política de Estado”, afirma. “Mandaram todo mundo para as celas, lá embaixo. Aí depois, bem mais tarde, à noite, eles desceram gritando que tinham matado o Marighella (líder da ALN). Eles gritavam: ‘Matamos o chefe, matamos!’ E davam gargalhadas. Foi uma noite infernal”, lembra.
Tortura 
Rose se recorda do quanto foi difícil ficar longe do filho, recém-nascido: “Eu tinha acabado de ter o Cacá em um parto difícil, com fórceps, eu ainda sangrava muito. E ainda tinha o leite que escorria pela roupa. Um dos militares que me estuprava se incomodava com o leite que escorria e eles resolveram me dar uma injeção para cortá-lo”, revelou. Ela conta ainda que resistiu o quanto pôde, mas que um dos torturadores a segurou e o outro deu a injeção. “Foi uma das piores coisas que eu passei. Isso tinha um significado muito grande”, enfatizou.
Foto: arquivo pessoal
“Para mim, quando eles tiraram o meu leite, estavam tentando tirar a ligação que eu tinha com o meu filho”, afirma. Na foto, Rose com o filho em 74, na praia de Ipanema (RJ).
Rose ainda analisa o significado que uma situação dessas representa para uma mulher. Ela conta que os torturadores sempre tiravam as roupas das presas para expô-las a situações de fragilidade: “Eles eram sádicos, torturadores. Para eles aquilo tudo era uma brincadeira. Mas para nós, enquanto mulheres, era profundamente humilhante. E, ao mesmo tempo, porque o meu marido estava lá também. Era terrível. Não foi na frente dele essas coisas, mas foi terrível”, conta. Como sequela dos abusos que sofreu na prisão, Rose descobriu, anos mais tarde, que havia ficado estéril.
Segundo a jornalista, uma das convicções que a ajudava a se manter firme naquela situação extrema era a lembrança de uma dos princípios da Revolução Francesa ‘De que todos têm o direito de resistir à tirania’: “Isso me fazia ter certeza que eu estava do lado certo,” afirma.
Lembranças 
De acordo com Rose, ela ficou 50 dias no Dops, já que os militares não tinham mandado de prisão contra ela. Depois disso, a jornalista teve sua prisão preventiva decretada e passou mais sete meses no Presídio Tiradentes, onde permaneceu com outras 60 presas políticas.
Para Rose, foi o jornalismo, a família e o fato de poder criar o filho que a ajudaram a reconstruir sua vida após a prisão. Ela trabalhou na TV Cultura, foi editora do Jornal Nacional, fez parte do projeto da TV Mulher e do Balão Mágico.
Além disso, desde que saiu da prisão, ela se considera uma defensora dos Direitos Humanos. Membro do grupo Tortura Nunca Mais e de associações da sociedade civil de defesa da pessoa humana, Rose sustenta que: “Enquanto uma única pessoa no mundo for torturada, a humanidade inteira estará ofendida.”

Foto: arquivo pessoal.
“Lá [no Tiradentes] eu conheci as pessoas mais extraordinárias da minha vida. As lembranças das pessoas com quem eu convivi são de extremo carinho e solidariedade humana que eu pude receber e compartilhar com as pessoas que passaram por lá. Isso é muito profundo. É um cimento para a vida toda”, disse. Foto: arquivo pessoal.
Superação
Após 11 meses na prisão, Rose recebeu do Juizado Militar a opção da liberdade vigiada e pôde sair da cadeia, embora a liberação tivesse fortes limitações como proibição de deixar a cidade, de chegar a casa após as 22h e de trabalhar. Ela acredita que essa era uma das formas do regime militar forçar o exílio dos antigos presos políticos. Ela só foi julgada – e absolvida – em 1972, tendo como advogada a criminalista Rosa Cardoso, hoje integrante da Comissão Nacional da Verdade (CNV).
Relação com Herzog
Para a jornalista Rose Nogueira, um dos momentos mais difíceis do período militar foi a prisão e o assassinato do jornalista Vladimir Herzog, em 1975. Nessa época, os dois trabalhavam juntos na TV Cultura e editavam o jornal “A Hora da Notícia.” Rose lembra que os jornalistas da TV começaram a ser acusados de “comunismo”, pela cobertura que faziam da Guerra do Vietnã.
“Em 1975, a Ditadura já estava totalmente desmoralizada pelas pessoas. A gente já tinha aprendido a ler jornal nas entrelinhas, o Estadão publicou “Os Lusíadas” inteirinho e o Jornal da Tarde publicava receita de biscoito e de bolo, no lugar das matérias censuradas. Eles não substituíam por outras. Nessa época aí, eles precisavam criar uma situação nova e por isso prenderam e mataram o Vlado na tortura. Para mim foi um choque terrível, porque eu era, além de tudo, amiga pessoal dele”.
“Em 1975, a Ditadura já estava totalmente desmoralizada pelas pessoas. A gente já tinha aprendido a ler jornal nas entrelinhas, o Estadão publicou Os Lusíadas inteirinho e o Jornal da Tarde publicava receita de biscoito e de bolo, no lugar das matérias censuradas. Eles não substituíam por outras", revela Rose. Foto: arquivo pessoal.
“Em 1975, a Ditadura já estava totalmente desmoralizada pelas pessoas. A gente já tinha aprendido a ler jornal nas entrelinhas, o Estadão publicou Os Lusíadas inteirinho e o Jornal da Tarde publicava receita de biscoito e de bolo, no lugar das matérias censuradas. Eles não substituíam por outras”, revela Rose, na foto de arquivo pessoal com o filho Cacá, no Parque do Ibirapuera (SP), início dos anos 70.
Comissão da Verdade
Rose considera a Comissão da Verdade, instaurada em 2012, um dos maiores avanços recentes da sociedade brasileira. Para a jornalista, a Comissão veio para reconstituir o processo histórico: “Eu fui uma das pessoas que mais batalhou para a Comissão da Verdade existir. A comissão veio recompor a história, porque se a gente não recompuser, nós vamos perpetuar uma cultura de violência que ainda existe na sociedade brasileira. Eu espero ansiosa pela publicação do relatório e desejaria, inclusive, que ela pudesse continuar as suas investigações.” A divulgação do Relatório Final da Comissão está prevista para dezembro. Especialistas afirmam que a expectativa é que se reconheça um número maior de mortos da ditadura com a entrega do relatório.
Para a ativista dos direitos humanos – que defende que a história não é um evento, mas um processo – é fundamental que a história do Brasil seja recomposta para que as novas gerações a conheçam efetivamente: “Essa juventude que goza da democracia não sabe como foi difícil conquistá-la, e isso ela precisa saber. A democracia foi uma conquista do povo brasileiro. E se existir um jovem que pensa que se houvesse uma ditadura ficaria livre dela está muito enganado. Porque a juventude é livre. Ela gosta de sonhar. Mas eu tenho certeza que se existe uma minoria que ainda defende um regime desses, faz isso por falta de cultura política, porque ainda não parou para pensar no que realmente aconteceu para a geração dos pais deles,” destaca.
Rose conclui dizendo que é confortador e gratificante pensar que passou a vida inteira pensando e lutando pelas próximas gerações: “Isso é importantíssimo para a alma da gente. Eu sempre penso que se as coisas estão ruins nós sempre podemos lutar e que o futuro pode ser melhor para quem está vindo aí”, conclui.
Escute outros trechos inéditos da entrevista com a jornalista Rose Nogueira

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