sexta-feira, 24 de agosto de 2012

As cidades bombardeadas e o esteticismo que não nos redime


DEBATE ABERTO

As cidades bombardeadas e o esteticismo que não nos redime

Estima-se que os pilotos dos bombardeiros americanos e seus aliados - particularmente os ingleses - que, certamente ouviram pelo menos uma vez a música "Scheherazad", de Rimsky Korsakov - nunca tenham considerado seriamente que, ao destruírem Bagdá, estariam elidindo seus próprios sonhos.

A suite "Scheherazad", de Rimsky Korsakov (1844-1908), escrita em 1888, talvez seja a mais popular peça do repertório sinfônico, que ainda embala as fantasias do ocidente para as histórias das "Mil e Uma Noites". Os instrumentistas a adoram: é uma espécie de cadência para orquestra, que dá, principalmente aos chefes de naipe de uma sinfônica, uma ampla possibilidade de brilhar, num dos trechos mais conhecidos - em que a cidade de Bagdá é referida, como uma espécie de síntese dos sonhos que todos temos de um Oriente, digamos, "exoticamente idealizado" . Estima-se que os pilotos dos bombardeiros americanos e seus aliados - particularmente os ingleses - que, certamente ouviram pelo menos uma vez a música - nunca tenham considerado seriamente que, ao destruírem Bagdá, estariam elidindo seus próprios sonhos. É uma questão sobre a qual quase ninguém pensa.

Estetizar é uma coisa, dizem os críticos. Viver a experiência da realidade a que os artistas dedicam sua inspiração é tão outra, que C.P.Wren, autor inglês de um livro que foi best-seller ("Beau Geste") , no qual o Oriente é o grande foco, achou de desancar todos os orientalismos como falsos. O grande Jorge Luis Borges, que nunca se esquivou de balancear suas experiências reais, com a poética de todas as ficções - principalmente as orientais - deveria considerar certamente impertinentes as observações de que determinados autores inventam países ou "orientes", que nunca existiram. 

Otto Maria Carpeaux, o grande crítico também de música, dizia isso sobre a peça de Rimsky Korsakov: "Scheherazad" seria a projeção de um oriente que só passou pela inventiva de seu autor- como se "As Mil e Uma Noites" fossem, por sua vez, verossímeis, apenas por portarem a sigla da impessoalidade de histórias criadas coletivamente. Os aviões ocidentais - isto é, também fabricadas no Ocidente - que destroem impiedosamente cidades milenares, como Bagdá, Alepo ou Kabul não estariam senão arranhando fantasias suspeitas: a das "Mil e Uma Noites" e da própria versão de Rimsky Korsakov, seriam algumas delas.

Anota-se, a propósito, que fazemos os mesmos com os índios e suas tradições. Os militares da ditadura brasileira que implementaram grandes projetos em terras indígenas - devidamente imitadas pelo atual regime democrático, pelo menos no pouco caso aos direitos dos índios - parece terem dividido ampla e claramente duas coisas: uma seria o passado devidamente agraciado pela paleontologia e, portanto, pelos museus, ou pela estética; outra seria a existência moderna dos descendentes, algo incômodos, portanto descartáveis, daqueles criadores dos tempos imemoriais. 

As coisas, no entanto, parecem se equivaler, contemporaneamente, e em âmbito mundial: se Roma, hoje em dia, com seus mais de dois mil anos, tivesse a desgraça de ser atingida por bombas, fosse de quem fosse, muitos imitaríamos o grande escritor e historiador da arte suíço, Jacob Burkhardt (1818-1897). Por uma burla de alguns de seus alunos, na Universidade da Basiléia foi incrementada a idéia de que Roma teria sido tragada por um terremoto. Vivia-se o fim do século XIX. O velho professor - um dos raros acadêmicos para quem Nietzsche nutria grande respeito - desandou a chorar como se tivesse perdido toda a razão de existir. 

Dedicara a maior parte da sua vida a estudar a Renascença italiana. Ser caudatário da cultura cristã não era, evidentemente, a única razão do seu inconformismo com uma história que não lhe pareceu um boato, como realmente era. Sabemos, entretanto, que não estamos diante de qualquer palavrório quando temos notícias do que está acontecendo em Bagdá, Damasco, Alepo, Trípoli e outras cidades do Oriente Médio. 

Aliás, além das pessoas que vemos percorrer desesperadas as ruas não só de Alepo, ou de Bagdá, nas raras fotos e filmagens que nos chegam dos que perdem seus familiares - quase não sabemos de manifestações que deveriam igualmente sensibilizar não apenas os admiradores da versão fantasiosa, das fantasias das "Mil e Uma Noites" como a "Scheherazad" de Rimsky Korsakov. 

Talvez, afinal, a única coisa sobre a qual temos perfeita noção, é do que acontece em nossos dias. Lemos que os bárbaros foram impiedosos com Roma - o que restou de seu passado físico, são as ruínas que reverenciamos como parte da nossa herança. É assim mesmo; pelo menos é o que parece. Ainda que nos espantem aparições concretas de figuras grotescas como Berlusconi, em Roma, consideramos como parte de nossa existência histórica, as colunas derruídas de um tempo que, apesar de tudo, não deixa de ser da nossa civilização - da nossa cultura cristã, por mais que nos saibamos e nos consideremos céticos, agnósticos ou francamente ateus. Somos ainda hoje herdeiros de Roma. Mas só de Roma?

Não seria o mesmo com Jerusalém, não apenas para os judeus, muçulmanos ou cristãos? Na verdade, o repertório da assim chamada "cultura universal" não pode se ater apenas ao que, em teoria, não se afigura nos dizer respeito. As "Mil e Uma Noites", com seu sultão, e Scheherazad, suas histórias eróticas, fantásticas e maravilhosas entrariam por aí - com ou sem a belíssima música de um compositor russo a que talvez devêssemos aplicar a palavra gênio. 

No entanto, às custas de um cinismo, quem sabe, "obligé", dadas as circunstâncias a que o Império nos submete, vemo-nos conformados a aceitar que as coisa andem como sempre na história dos homens: o que menos valem são os velhos, mulheres, crianças e prédios históricos soterrados quase que diariamente, sob bombas, não se sabe bem em nome de quê. Falamos de imperialismo como se o capitalismo fosse a condição natural do mundo; e como se não tivéssemos de nos precaver da repetição de um stalinismo que também não poupou culturas quando lhe foi dado optar entre atacar com ferocidade ou respeitar os direitos dos povos. 

No filme "Apocalipse Now", de Francis Ford Coppola, o comandante de um dos helicópteros militares tentava demonstrar seu nível civilizatório fazendo soar Wagner por auto-falantes, enquanto as aeronaves preparavam-se para atacar e matar vietnamitas. Sabemos dos antecedentes da música de Wagner: ela foi usada à saciedade pelos nazistas que dela se apropriaram como um corolário natural da música dita "germânica", já que Richard Wagner foi, de fato, um anti-semita declarado. Nunca ninguém ousou, a sério, sequer sugerir que o compositor aprovaria os campos de concentração de extermínio nazistas, crime talvez sem paralelo na história. 

No entanto, sob alegações, talvez nem tão estúpidas quanto a superioridade racial, persistimos no cultivo ao absurdo de sonharmos com Scheherazad ao não atentarmos que, sem Bagdá, a grande música de Nikolai Rimsky-Korsakov não existiria. Ainda que assinemos embaixo, erroneamente quem sabe, que o compositor russo apenas inventou o que não existe. Como se inventar o que não existe, não fosse justamente a função da arte. E como se o Brasil que Villa-Lobos e Euclides da Cunha inventaram - para só citar dois nomes - não fosse exatamente o que temos como entre as melhores de nosso país.

Enio Squeff é artista plástico e jornalista.

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