'Sem água nas torneiras há semanas, população gasta boa parte do dia, ou da noite, buscando bicas d'água. Para isso, faz investimentos altos em infraestrutura e abusa da criatividade
por Rodrigo Gomes, da RBA publicado 04/11/2014 10:20, última modificação 04/11/2014 10:29
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São Paulo – A vida em Itu, a 100 quilômetros da capital paulista, já girou em torno da produção de açúcar, e também do café, tendo sido considerada uma das mais importantes cidades do estado entre 1850 e 1935. Depois disso, a principal atividade foi a produção de cerâmica vermelha e também o turismo motivado para a chamada “cidade do exagero”. Hoje, no entanto, Itu está em destaque em razão da seca, e a população gasta boa parte de sua energia, e do dinheiro, em uma busca desesperada por água potável, que em alguns locais não chega nas torneiras há 50 dias.
O aposentado José Bernardo, de 70 anos, vendeu um carro que valia R$ 33 mil por R$ 15 mil. Comprou uma caminhonete usada por R$ 39 mil, assumindo 48 parcelas de R$ 500. Acoplou ao veículo uma caixa de água de 500 litros, mais uma bomba d'água com uma extensão elétrica e uma mangueira, ambas com 35 metros. Essa parte, ao custo de R$ 1.200. Isso sem contar o gasto com combustível. O objetivo? Conseguir água.
“A gente está passando muito aperto. Não só pela falta da água em si, mas porque temos um parente que necessita cuidados de higiene mais complexos. Até hoje não vimos a cor do caminhão-pipa. A gente tem de se virar”, desabafa Bernardo, que passa boa parte do dia indo e vindo da fábrica de cerveja Brasil Kirin, a cerca de sete quilômetros de sua casa, onde pessoas varam a noite pegando água na bica situada ao lado do portão de entrada. Ao voltar para casa, Bernardo ainda tem de subir no telhado da casa, levando consigo a mangueira para abastecer a caixa de mil litros.
A liberação de água das empresas e de outras propriedades na cidade é fruto de um decreto da prefeitura, que determinou a liberação de poços artesianos privados para a população. Além disso, desde fevereiro está decretado o racionamento, que previa água em dias alternados. Mas, desde setembro, muitas torneiras estão secas.
O cunhado de Bernardo, Ocimar de Souza Leite, de 60 anos, tem um problema de saúde que o deixa muito vulnerável a infecções, necessitando, ao menos, dois banhos diários para afastar o risco. Mas falta água na residência há 30 dias. “Não temos mais a quem recorrer. Ninguém nos apresenta uma solução. A empresa não atende, os vereadores não respondem e o prefeito ninguém vê faz tempo”, protesta Leite.
Cadeirante, Leite teria preferência no atendimento dos caminhões-pipa, que distribuem água emergencialmente na cidade. Até quarta-feira (30), dia em que a reportagem visitou a cidade, havia 40 veículos fazendo o abastecimento. No mesmo dia, o governador de São Paulo, Geraldo Alckmin (PSDB), ofereceu apoio de mais 20 caminhões, contratados pela Defesa Civil. “Não sei para onde vão os caminhões. Ninguém sabe, na verdade. Aqui eles não chegam”, reclama.
No Jardim Padre Bento, onde moram Bernardo e Leite, a presença da reportagem da RBA chamou a atenção de muitos moradores, que também tinham muitas reclamações sobre a situação. Na cidade há marcas de incêndios pelo asfalto, que, segundo os moradores, são causados pelos protestos agora cotidianos.
Algumas dificuldades surgiram na vida dos ituanos em consequência da seca. Comprar uma caixa de água é quase impossível, pois o item agora é raro e caro – cerca de R$ 800 uma caixa de mil litros – em qualquer casa de material para construção na cidade.
Até mesmo a compra de um galão com 20 litros de água já pesa no bolso. Não sai por menos que R$ 28. Na capital paulista custa de R$ 8 a R$ 15. Mesmo assim, a maior parte das revendedoras de água está fechada, com cartazes simbólicos: “Acabou a água”.
Comprar mil litros de água de um caminhão-pipa se tornou artigo de luxo. O custo médio é de R$ 130. Em uma casa com quatro pessoas, essa quantidade é consumida em, no máximo, três dias – considerando os parâmetros da Organização das Nações Unidas (ONU), de 110 litros por pessoa por dia, para uma utilização saudável da água.
Em condições normais, as pessoas pagam R$ 27,80 por até dez mil litros de água utilizados em suas casas em um mês, para a concessionária Águas de Itu. Esse pagamento – equivalente à tarifa mínima da Sabesp na capital paulista – é outro motivo de revolta para a população de Itu. Com as torneiras quase sempre secas, muitas pessoas ainda receberam contas com a cobrança do valor mínimo.
A dificuldade em conseguir algo tão essencial para o cotidiano está mexendo com os nervos dos cerca de 150 mil ituanos. “A gente não dorme mais. Estamos sempre esperando alguma água chegar nas torneiras. Quem trabalha durante o dia tem de ir nas bicas de noite. E só depois fazer alguma coisa em casa. Quem não tem carro tem de contar com a boa vontade dos outros. Ninguém aguenta mais”, lamenta a dona de casa Solange Rodrigues Belon, de 55 anos, sintetizando o sentimento geral.
Segundo Solange, é impossível localizar os caminhões-pipa, pois a empresa Águas de Itu não passa informações. Mesmo no site do Comitê de Gestão da Água, criado há 40 dias para definir ações prioritárias e acompanhar a atuação da empresa, não há informações claras de onde o caminhão vai estar. Sabe-se apenas onde ele já esteve.
Mas do caos surge a criatividade. A população ituana tem feito desde alterações simples, como o carro que passou a ficar estacionado na rua dando espaço na garagem a mais uma caixa d'água, a ter tambores diferentes para os diversos tipos de água – para beber, para lavar roupa ou para limpeza – até a engenhocas para minimizar as dificuldades.
Nesse caso se destacam o aposentado José Manoel Sobrinho, de 73 anos, e a esposa Clarisse Cardoso, de 68. Eles montaram vários sistemas com garrafões instalados na pia e no banheiro para garantir uma estrutura mínima para banho e lavagem de louça.
Como não pode carregar os galões de 200 litros que mantém no carro, Manoel também montou um sistema para bombear água do veículo para um galão no quintal e dali para a caixa d'água da casa. “Assim não preciso mais subir no telhado. Só que a gente já nota uma diferença na conta de energia elétrica, pois usamos a bomba muitas vezes por dia”, relata.
Espera
A fila na fábrica da Brasil Kirin tem uma espera de cerca de uma hora durante o dia, mas à noite as pessoas ficam mais tempo. “Se você vier aqui às oito da noite, vai passar três horas na fila. Se vier às três da manhã, ainda vai ter gente na fila”, revela o analista de qualidade Rafael Alexandre dos Santos, de 31 anos.
Além dele, outras dez pessoas estavam no local com seus carros, todos adaptados para carregar o maior volume de água possível. Alguns circulam com inúmeros galões. Quem não tem carro carrega garrafas e galões em carrinhos de mão, de feira ou no braço mesmo.
É o caso dos irmãos Juno e Fábio dos Santos Silva, recém-chegados da Paraíba para trabalhar na cidade. “Vendo essa situação a gente até já pensa em voltar para lá.” Sem carro e morando distantes das principais bicas – além da Brasil Kirin, a praça Fonte Nova e a Fazenda –, os dois pegavam água de uma mina da qual não se conhece a procedência.
“A gente não vai beber nem cozinhar. Mas, para banho, lavar roupa e limpar casa, depois de ferver, acho que não tem problema”, pondera Juno. Os dois têm de carregar galões nos ombros até o Jardim Eliane, onde moram, cerca de dois quilômetros da mina d'água.
Os pontos de distribuição da Águas de Itu foram ampliados com a instalação de sete caixas de 20 mil em algumas praças da cidade, e mesmo assim os moradores têm dificuldade para se abastecer. “É muita gente para pegar água, então acaba rápido. E daí as caixas demoram para ser reabastecidas”, reclama a assistente administrativa Rosana Metzner, de 50 anos.
Moradora do Jardim São Camilo, Rosana não cozinha mais. Sem água há quase dois meses na torneira, ela e o marido passaram a comprar marmitex no almoço e no antar, de preferência acompanhada de talheres descartáveis, pois a compra desses teve de ser suspensa depois que começou a pesar no orçamento familiar. “Nós dois trabalhamos e não temos muito tempo para conseguir água. O que conseguimos serve para banho e para beber”, conta.
Na tarde de ontem (3), para alento de Rosana e de todos os ituanos, choveu forte na cidade de Itu, após quase 30 dias de estiagem contínua. "Obrigada Deus pela chuva. O povo de Itu com certeza está comemorando", festejou.
Os fins de semana de Rosana são passados em Indaiatuba, a 25 quilômetros de Itu, na casa da mãe. Segundo ela, é a forma mais “tranquila” de lavar roupa e conseguir mais alguma água. “A gente tenta sujar a menor quantidade de roupa possível. Usa peças escuras. Vai segurando como dá”, explica. Além disso, as visitas em sua casa estão proibidas. “Como eu vou receber alguém na minha casa nessas condições?”, questiona.
Vizinho de Rosana, o assistente administrativo Wilson Luís Boff, de 38 anos, tentou o caminho da Justiça, mas até agora só conseguiu arquivar dezenas de documentos. “Reclamei na Ouvidoria, na Câmara de Vereadores, na prefeitura e no tribunal de pequenas causas. Neste último obtive resposta positiva e foi determinado que a cada 48 horas um caminhão-pipa fizesse o abastecimento, conforme determina o decreto de racionamento. Mas só vieram uma vez”, conta.
Negócios
Donos de lojas e restaurantes de Itu temem ter de fechar as portas caso a crise persista e as respostas do poder público e da Águas de Itu sigam sendo insuficientes. Em virtude do aumento de custos para comprar água de caminhões pipa temem que o próximo problema a se abater sobre a cidade sejam o desemprego e as falências.
Uma lojista da região central, que pediu para não ser identificada, revelou que os empresários não sabem o que fazer em relação as festas de fim de ano. "A gente não sabe se compra produtos. Do jeito que está hoje, com as pessoas saindo da cidade no fim de semana, pode ser que no natal e no ano novo ninguém queira ficar aqui. Vai ser um desastre", lamentou.
Um dono de restaurante, também com a identidade resguardada, contou que tem de comparar água de caminhões-pipa toda semana para manter o estabelecimento. "Meu custo em três semanas foi de R$ 600 só com água para fazer comida. Não sei quanto tempo a gente aguenta nessa situação", afirma.
Bares e padarias têm servido os clientes com copos, pratos e talheres de plástico, o que também aumenta os custos cotidianos. "Tem de ser um produto minimamente resistente, se não causa um constrangimento", explica o dono do restaurante. Outro problema é que nenhum estabelecimento libera seus banheiros a clientes.
A primeira manifestação contra a falta de água em Itu foi em junho. Cerca de cem pessoas pararam o trânsito próximo ao Largo da Matriz, no centro da cidade. Depois disso, em setembro, cerca de duas mil pessoas realizaram outro ato, no qual atacaram a Câmara Municipal com pedras e ovos, revoltadas com a falta de ação do poder público frente à crise. Nesse dia houve intervenção da Tropa de Choque da Polícia Militar. Ainda em setembro, outra manifestação, cobrando a decretação do estado de calamidade pública, foi realizada no comitê de campanha do ex-prefeito de Itu Herculano Passos (PSD), então candidato a deputado federal. O ato foi reprimido pela polícia novamente. Já em outubro, um ônibus intermunicipal foi queimado para paralisar a rodovia Waldomiro Correia de Camargo (SP-79), na altura do bairro de Cidade Nova. No último dia 27, cerca de 300 manifestantes travaram a rodovia Marechal Rondon (SP-300), durante a noite. Além desses, diversos outros atos menores têm ocorrido quase que diariamente na cidade.
Intervenção
Os moradores já organizaram abaixo-assinados – o último com sete mil assinaturas – pedindo que a prefeitura decrete estado de calamidade pública. E apoiam o pedido de intervenção na cidade feito pelo Ministério Público (MP) em Itu. Se assim for, o governo paulista terá de indicar um interventor para atuar na cidade no lugar do atual prefeito Antônio Luiz Carvalho Gomes, o Tuíze (PSD). A Justiça ainda aguarda a defesa da prefeitura, que deve ser entregue nesta semana.
O prefeito não aceitou falar com a RBA, que foi atendida pelo porta-voz do comitê, o coordenador da Defesa Civil municipal e coronel reformado da Polícia Militar, Marco Antônio Augusto, na sede da Guarda Metropolitana. No entanto, logo após a entrevista com Augusto, Tuíze adentrou rapidamente a sala do porta-voz, acompanhado de outras pessoas, para uma reunião com ele.
Augusto admitiu que há dificuldades para atender à população e que os caminhões-pipa não dão conta de retornar às casas em 48 horas. Além disso, o próprio modelo de abastecimento não contribuía para equilibrar a distribuição. “Algumas pessoas tinham grandes reservações e, com isso, o abastecimento ficava em poucas casas. Agora determinamos, através do comitê, que não pode abastecer mais que mil litros em uma mesma residência, mas isso ainda leva algum tempo para normalizar”, explica.
O porta-voz responsabilizou a empresa Águas de Itu, concessionária do serviço há sete anos, por não ter realizado obras, como o desassoreamento dos mananciais e o aumento da disponibilidade hídrica, trazendo água de outros locais para complementar o abastecimento. Mas ponderou que isso não impediria a crise. “O que percebemos é que a situação poderia estar diferente. Problemas com a água nós iríamos ter de qualquer jeito em virtude da estiagem. Mas se tivesse sido feito, por exemplo, o desassoreamento dos mananciais teríamos mais água armazenada”, diz Augusto.
O porta-voz revelou que a prefeitura multou a empresa em cerca de R$ 10 milhões por ações previstas em contrato que não foram realizadas.
O aumento da disponibilidade está sendo feito agora no Ribeirão Mombaça, que fica a 22 quilômetros da cidade. Com as ações para captação, a empresa pretende trazer 280 litros de água por segundo, para abastecer cerca de 100 mil pessoas na região central da cidade. Esta obra, no entanto, deve ficar pronta somente em janeiro de 2015.
Os mananciais de Itu são abastecidos basicamente por chuvas. A cidade não tem grandes rios, somente alguns ribeirões, cujo volume de água é menor. “No último ano choveu 600 milímetros, o que não significa nada em termos de captação. Nossa região é característica de uma situação de escassez, mas sempre foi suficiente para manter o abastecimento normal de 24 horas por dia. Neste ano não”, observa Augusto.
Perguntado sobre o por que de não se decretar estado de emergência ou de calamidade pública, Augusto diz que a medida não está descartada, mas que hoje não seria aceita pelo governo estadual. “Itu não tem como ser reconhecido como situação de calamidade", pontua.
Segundo o porta-voz, seria preciso haver incolumidade pública, ou seja, descontinuidade dos serviços de saúde ou educação, por exemplo, ou morte de pessoas. A Águas de Itu tem fornecido água aos estabelecimentos públicos entre 20h e 3h da manhã. Também poderia ser considerado emergência se a cidade tivesse de usar pelo menos 3% dos recursos orçamentários para comprar água. "Mas hoje não colocamos dinheiro nenhum, porque é a empresa privada que precisa comprar água e fazer as obras", detalha.
Questionado sobre as pessoas com necessidades especiais que não estão recebendo água dos caminhões-pipa, Augusto explica que elas precisam entrar com contato com a Secretaria da Saúde. "Se elas estão cadastradas e não estão recebendo precisam reclamar na agência reguladora."
Apesar da crise e de admitir que a empresa deixou a desejar no cumprimento do contrato, Augusto não considera que isso seja um problema e aponta para um caminho de maior valoração econômica da água como resposta ao momento vivido em São Paulo. “Eu estive no Japão há três anos e pedi um copo de água. Me mostraram uma máquina que vendia garrafinhas de água por meio iene. Lá a água não é dada, é comprada. Vai chegar um momento no Brasil que a água terá de ser comprada. Porque ela é finita”, conclui.
A empresa Águas de Itu não respondeu ao pedido de entrevista.
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