quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015

DA VINAGREIRA AO CANTAREIRA.

Da vinagreira ao Cantareira
   
DENISE BERNUZZI DE SANT’ANNA– Saber que a falta de água é antiga não ameniza o problema, apenas mostra com mais força a inoperância da administração
“Todos os dias sente-se a falta de água nesta cidade. O actual encanamento, além de defeituoso, não tem a capacidade precisa para conduzir as águas fornecidas pelas vertentes”, informou o jornal Correio Paulistano, em 28 de fevereiro de 1864.
Os problemas com o abastecimento de água na capital paulista foram várias vezes noticiados pelos jornais do século 19: além do encanamento ruim, havia sujeira nos reservatórios, comerciantes de água desonestos, contaminação do Rio Anhangabaú e de vários poços. São Paulo nasceu entre rios, em meio a uma riqueza hidrográfica natural. Entretanto, gargantas secas e água impura marcaram sua história. Em épocas “calmosas”, com pouca chuva, aumentava a sofreguidão popular. Muitos rezavam, faziam romarias para chover. Quando a chuva não vinha, São Pedro era acusado de descuido.
Mas o dito descuido era principalmente humano. Mesmo depois da criação da Companhia Cantareira de Águas e Esgotos, em 1877, o abastecimento de água continuava insuficiente. O advento da República não solucionou o problema. Em 1920, por exemplo, os jornais noticiaram a escassez de água numa São Paulo que já ultrapassava os 500 mil habitantes. Caberia perguntar: afinal, de lá para cá, o que mudou? O estado pouco auspicioso das antigas caixas d’água teria relação com a poluição das atuais represas? A secura dos chafarizes imperiais teria parentesco com a ausência de água nos chuveiros e torneiras da atualidade?
Sim e não. Obter água potável e abundante permaneceu durante décadas um luxo para os pobres e um conforto para os ricos. Hoje, nem isso. No Império, os mais abastados dispunham de uma fonte em seus terrenos, além de escravos que buscavam água limpa e despejavam águas servidas. Para os pobres, o jeito era caminhar ladeira abaixo rumo aos rios e depois subir os morros com baldes sobre a cabeça. Ou disputar a água dos chafarizes, cujo funcionamento obedecia a horários estabelecidos pelas autoridades locais. Havia ainda paulistanos que desviavam clandestinamente os regos de água, retirando-os do espaço coletivo para usufruto particular. O pior era a ameaça de incêndios, especialmente antes da cidade possuir um Corpo de Bombeiros.
Entre aquela época e a nossa, mudaram as tecnologias, as maneiras de utilizar a água e de conceber a limpeza. Antes dos estudos de Pasteur sobre os micróbios, água limpa era aquela sem impurezas visíveis a olho nu. Banho em banheira era uma experiência rara, às vezes assustadora. A água parada levantava suspeitas: podia penetrar nos poros e amolecer a moral. A Sereia Paulista, no centro da cidade, dispunha de banheiras para seus fregueses, nem sempre com muita água. O bisavô das modernas duchas chamava-se “banho de chuva”: um chuveiro manual, cujo uso podia provocar palpitações nos idosos. O asseio tendia a ser mais seco do que molhado: eram importantes os panos embebidos em lavandas e a “vinagreira” – um banho de bacia com um pouco de vinagre. A limpeza comprovava-se pelas roupas lavadas e engomadas, mais do que pelo banho completo. Mas era importante livrar os lares dos miasmas nauseabundos com a queima de ervas em braseiros, de prata nas casas dos endinheirados, de barro nas habitações pobres.
Apesar das dificuldades com o abastecimento, São Paulo possuía uma paisagem aquática disponível para todos. Exigi-la hoje, quando falta água para as necessidades básicas, parece supérfluo. Existiam rios que serviam para a pesca, a navegação, a lavagem da roupa, os esportes náuticos, as estripulias da molecada, os despachos religiosos, ou simplesmente para a contemplação gratuita daqueles que vinham buscar repouso em suas margens. O progresso nas tecnologias de purificação e distribuição da água não garantiu aos paulistanos a permanência daquelas experiências com os rios. Nem mesmo assegurou que haverá água para abastecer a cidade no presente.
Hoje o consumo de água é muito maior do que aquele da São Paulo imperial. Aumentou a população e multiplicaram-se as necessidades que exigem o líquido, da higiene à eletricidade, passando pelo funcionamento do comércio e das indústrias. Basta lembrar do colossal volume de água utilizado para assegurar a atual exportação de carne e soja. Sem água e sem acesso aos rios – hoje canalizados ou transformados em esgoto a céu aberto – os habitantes de São Paulo ficam muito mais “a seco” e desamparados do que no passado. Além disso, antes falava-se na escassez do líquido. Hoje, anuncia-se seu rápido fim.
Por isso, saber que a falta de água é um problema antigo não o justifica nem o ameniza. Ao contrário, só agrava a percepção da grave inoperância da administração pública, numa cidade conhecida como sendo a mais rica do Brasil.
DENISE BERNUZZI DE SANT’ANNA É PROFESSORA LIVRE-DOCENTE DE HISTÓRIA DA PUC-SP, AUTORA DO LIVRO CIDADE DAS ÁGUAS. USOS DE RIOS, CÓRREGOS, BICAS E CHAFARIZES EM SÃO PAULO (1822-1901) (SENAC)
Texto postado originalmente em:
http://alias.estadao.com.br/noticias/geral,da-vinagreira-ao-cantareira,1630855

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