quinta-feira, 21 de janeiro de 2016

Ouvimos o físico nuclear que Época acusa de “terror”

POR 
REDAÇÃO

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Adlène, em uma biblioteca. Por temer represálias, após linchamento pela mídia, cientista prefere não ser fotografado de frente
Adlène, em uma biblioteca. Por temer represálias, após linchamento pela mídia, cientista prefere não ser fotografado de frente
Na França e na UFRJ, seus colegas veem-no como “brilhante”. Todas as “acusações” contra ele baseiam-se em suas opiniões divergentes. Mas Adlène Hicheur é muçulmano, num tempo de intolerância ocidental crescente
Por Florência Costa e Shobhan Saxena
Adlène Hicheur ainda consegue abrir um sorriso atrás da barba escura e bem desenhada que cobre suas bochechas afundadas. Com uma mochila verde pendurada em seu ombro esquerdo, ele caminha calmamente na sala e senta na beira do sofá.
Então, ele começa a falar, falar, falar. Ele adora falar. No meio de uma frase sobre islamofobia, ele desliza a mão para dentro da bolsa e saca dois livros. Um deles, em francês, é o clássico As Veias Abertas da América Latina, do uruguaio Eduardo Galeano. “As pessoas não podem esquecer a sua história. Eu li este livro quando estava na prisão e estou lendo de novo”, diz. “Nós precisamos conhecer as alternativas, outras formas de vida”, diz ele, tirando da bolsa outro livro, este em português: Por uma outra Globalização, do renomado geógrafo brasileiro Milton Santos. “Eu adoro suas ideias. Ele faz uma nova interpretação do mundo contemporâneo”, comenta, enquanto bebe chá branco em pleno calor carioca. “Eu gosto de chá. Não preciso de café. Já sou muito agitado”, conta. Ele coloca a mão dentro da mochila novamente e desta vez surgem mais dois livros sobre ecologia e desenvolvimento sustentável.
Hicheur, 39, não precisa de gatilho para começar uma conversa. Parece que dezenas de ideias borbulham na sua mente ao mesmo tempo. Ele salta, em questão de minutos, de física de partículas, para geopolítica, história da Argélia, repressão aos muçulmanos na Europa, álgebra, culinária, cinema. Há espaço até mesmo para Batman em sua conversa. As frases saem de sua boca em várias línguas: inglês, francês, português, de vez em quando com pitadas de árabe.
Ele faz uma pausa apenas para enxugar o suor de sua testa ou para ajustar os óculos que pousam em seu nariz. Então, a conversa amena começa a ganhar um tom mais sério: a sua atual situação. Ele se afunda no sofá e fica em silêncio – por alguns segundos. “Sinto que tem uma bola no meu estômago – sinto um vazio”, franzindo suas fartas sobrancelhas. “Eu decidi deixar o Brasil. Não sei ainda para onde vou e quando, mas vou embora”, contou.
Adlène Hicheur não está deixando o Brasil por sua própria vontade. O cientista, tido por todos que o conhecem como brilhante, está sendo empurrado porta afora, segundo seus colegas. Hicheur foi taxado no Brasil como uma ameaça terrorista real devido a acusações do passado. Ele protege firmemente a sua privacidade, não deixando que se fotografe seu rosto, até para não sofrer agressões na rua.
Mas sua vida e seu passado não são nenhum segredo. Uma simples procura no Google mostra que em 2009, enquanto trabalhava na famosa Organização Europeia de Pesquisa Nuclear (CERN), que abriga um superacelerador de partículas, perto de Genebra, na Suíça, ele foi preso pela polícia francesa. A acusação foi de “formação de quadrilha com um grupo terrorista” (Al Qaeda no Mahgreb). Ele passou 30 meses enjaulado. É também de conhecimento público que a polícia francesa acusou Hicheur devido a 35 emails e conversas virtuais em fóruns na internet com um interlocutor que usava pseudônimo e que alegadamente seria um integrante argelino da Al Qaeda. Durante o julgamento, não se conseguiu apresentar nenhuma prova ou indício de que ele teria tomado qualquer ação para concretizar seus comentários. Sua resposta às acusações é bem conhecida também: ele alega que as conversas online icluíam numerosos tópicos internacionais, que ele nunca planejou nenhum ataque terrorista com ninguém. Há até uma página na Wikipedia sobre Hicheur que compara seu caso com o de Lotfi Raissi, acusado de ser o principal mentor do ataque terrorista de 11 de setembro de 2001 nos EUA, mas depois foi libertado sem qualquer acusação.
Também não é segredo que após 949 dias na notória prisão de Fresnes, em Paris, Adlène Hicheur foi liberado em maio de 2012. Ele deixou o país um ano depois, com o caso encerrado. Desde então, já no Rio, procurava colocar sua vida nos trilhos novamente – como professor e pesquisador. Aqui ele estava feliz porque se sentia bem acolhido. Já havia se convencido de que conseguiria apagar a marca de terrorista que havia sido carimbada em seu rosto na Europa e que o assombrou de 2009, quando foi preso, a 2013, quando chegou aqui. “Fui capaz de ensinar física na UFRJ e me dediquei totalmente às minhas pesquisas, além de escrever artigos acadêmicos. Tudo caminhava muito bem. Isso era tudo o que eu queria na minha vida e aqui no Brasil eu encontrei espaço para fazer isso”, lembrou Hicheur.
Ele estava no lugar certo mas provavelmente no momento errado.
Reciclando o passado
No último dia 9, em meio à intensa disputa entre partidos políticos sobre a “necessidade” de o país adotar uma lei anti-terrorismo, Hicheur apareceu na capa da revista Época, com uma reportagem intitulada “Um terrorista no Brasil”. A matéria afirmava que havia “um segredo” na biografia do cientista, que estava sendo investigado pela Polícia Federal. Dizia ainda que ele havia recebido “uma bolsa do governo e que ensina em uma universidade pública”. A reportagem citou alguns emails que falavam em atentados terroristas, trocados entre ele e e um interlocutor chamado Phenix Shadow, que segundo o governo francês seria um membro da Al Qaeda. Mas Hicheur e seus colegas reagiram afirmando que a matéria remoeu detalhes velhos do caso já amplamente noticiados na mídia europeia há seis anos. A foto de um Hicheur barbeado foi estampada com um título em vermelho: “terrorista”. A reportagem parecia trazer a mensagem de que o Brasil está sob uma ameaça terrorista. “Não há segredo em meu currículo. Eu cheguei ao Brasil com um visto válido, convidado por um centro de pesquisas. Meu caso é muito conhecido, é passado. Eu sou cientista mas eles me carimbaram como terrorista ao reciclar de forma vergonhosa uma história velha”, protestou Hicheur, com um misto de tristeza e raiva.
Isso foi apenas o início de seu pesadelo brasileiro, com toda a grande mídia atrás dele. Sua foto, retirada do website do Ministério da Ciência e Tecnologia, ilustrou jornais e revistas, além de reportagens de televisão. Adlène Hicheur, um cientista que ainda trabalha, a partir do Brasil, em parceria com o CERN, foi apresentado como um perigo iminente ao Brasil. “Seu julgamento e condenação foram muito questionados. Os juízes sabiam disso, senão não o teriam liberado após três anos”, afirmou Patrick Baudouin, seu advogado, ao jornal Le Monde, na última quinta-feira. O Le Monde publicou uma matéria sobre o escândalo em torno de Hicheur a partir da reportagem da revista. Mas o próprio jornal francês, que fala de uma “máquina midiática-política”, coloca a palavra “terrorista” entre aspas. “Em todo o caso ele cumpriu sua sentença”, acrescentou Baudouin, que é também diretor da Federação Internacional dos Direitos Humanos.
Mas o estrago já tinha sido feito.
Fatos cruciais foram ignorados no bombardeio contra Hicheur. A longa detenção do pesquisador foi criticada por mais de 600 cientistas, incluindo o prêmio Nobel de Física Jack Steinberger, além de organizações de defesa dos Direitos Humanos na Europa. Hicheur acredita que está sendo julgado novamente no Brasil, quando já cumpriu a pena, e por um crime que, segundo ele, nunca cometeu.
“Nem a mídia francesa mostrou uma hostilidade tão exacerbada contra mim”, disse o físico, que recusou-se a falar com os jornalistas que invadiram sua sala na UFRJ e bateram na porta de seu apartamento, na Tijuca. Os repórteres, após entrarem no prédio, que não tem porteiro, fizeram plantão no corredor de seu andar, até que um colega de Hicheur chamou a Polícia Federal para retirá-los de lá.
Quatro dias após ele ter se transformado em manchete no país, Hicheur concordou em nos dar uma entrevista para contar seu lado na história. “Sem gravadores escondidos e sem fotos”, foi a única condição que ele apresentou. Ele avisou que poderíamos perguntar qualquer coisa.
Vestindo túnica de algodão azul marinho de manga curta, calça preta e sandália marrom, e com um boné cobrindo a sua cabeça, Adlène Hicheur entra na sala da casa de um amigo, aperta as mãos dos jornalistas, e senta para ser entrevistado.
Hicheur conversa com a urgência de um homem que tem muito a dizer mas pouco tempo. Sua dicção é serena enquanto ele faz a conexão do que aconteceu com ele com o contexto político e social mais amplo.
Como um verdadeiro físico, ele explica sua história, como uma equação onde ciência, política, religião e cultura interajam uma com a outra.
Primeiro Julgamento
Hicheur nasceu em Setif, uma região montanhosa com florestas verdes e uma cidade com ruas arborizadas, no norte da Argélia, em 1976. Quando tinha um ano, sua família mudou-se para Isère, na França, levando ele, seus dois irmãos e três irmãs. Mesmo tendo nascido em uma família simples — seu pai era operário da construção civil –, ele ficou em primeiro lugar na turma de mestrado de Física Teórica na École Normale Supérieure, uma universidade da elite francesa. Fez o doutorado no Laboratório de Física de Partículas de Annecy-le-Vieux de (Lapp), após breve passagem pelo Stanford Linear Accelerator Center (Califórnia). Em seguida, foi para o Rutherford Appleton Laboratory, perto de Oxford, na Inglaterra, onde fez seu pós-doutorado. Depois, foi convidado a trabalhar no Departamento de Física de Altas Energias da École Polytechnique Fédérale de Lausanne (EPFL), na Suíça, e trabalhou no experimento LHCb do CERN.
Como uma estrela ascendente do EPFL, Hicheur tinha tudo a seu favor quando de repente sua vida começou a se desintegrar. No início de 2009 foi diagnosticado com hernia de disco que o fazia sofrer com fortes ondas de dores na espinha e na perna direita. Ficou confinado na cama da casa dos pais, em Isère. Algumas vezes as dores eram tão insuportáveis que ele tinha que tomar injeções de morfina. Só conseguia se locomover com andador.
Mas o pior estava por vir.
No dia 8 de outubro de 2009, a casa dos Hicheurs foi invadida por homens encapuzados fortemente armados. Eram agentes da polícia e da inteligência francesa. Hicheur e seu irmão mais novo, Zitouni, um engenheiro mecânico, foram levados para a delegacia de polícia. Seus computadores e equipamentos eletrônicos foram confiscados. “Não sabíamos o que estava acontecendo. Minha mãe, que é diabética, desmaiou e a polícia não deixou que a socorrêssemos. Mesmo com dores terríveis eu fui levado para o carro da polícia”, lembrou Hicheur com amargura.
Zitouni foi liberado após poucos dias, mas Hicheur foi acusado de “formação de quadrilha” com um grupo terrorista e enviado para a prisão de Fresnes. Sua detenção passou a dominar as manchetes da mídia francesa e europeia.
“O terrorista do Big Bang”
Em 2009, o CERN estava sob holofotes da mídia global por suas colisões de altas energias no maior acelerador de partículas do planeta. O laboratório inspirava livros de ficção e filmes com tramas recheadas de teorias conspiratórias. No início de outubro daquele ano, quando coincidentemente nós dois visitávamos o CERN em uma viagem de 10 dias pela Suíça, o entusiasmo em torno do experimento do “Big Bang” (que procurava descobrir a origem do universo), chegava ao ápice.
“Cientista do Big Bang acusado de ter ligações com o terror”, dizia uma manchete em um jornal australiano. Outros reproduziam chamadas semelhantes e aterrorizadoras. Naqueles dias, em conversas com cientistas no bandejão do CERN, nós percebemos que a notícia explosiva assustou muitos, mas não convenceu vários de seus colegas mais próximos. Hicheur, que desde sua prisão tem negado consistentemente sua ligação com grupos terroristas, diz que paga um preço alto por ser um muçulmano bem educado na França. “As pessoas aqui não entendem o que significa ser muçulmano na França nestes dias, o que significa ser um migrante argelino. Se você é um muçulmano com alto nível cultural e educacional e ascendeu na vida, eles vão te derrubar. Eu fui apresentado como como um exemplo de terrorista bem-educado, ativo na internet e que se radicalizou. Eles queriam me punir por minhas opiniões políticas”, afirmou Hicheur. “Eles queriam apenas destruir a minha reputação. Eles queriam me desumanizar”, concluiu.
Ele não foi o único que interpretou a sua detenção desta forma. Jean-Pierre Lees, um físico do Lapp que trabalhou com Hicheur e fez campanha por sua libertação, disse em 2011 que os promotores “sabiam muito bem que ele não tinha feito nada sério”. Citado em um artigo da revista científica internacional Nature, Lees disse que Hicheur foi atingido porque é um muçulmano com alto nível de educação trabalhando em física.
Mas o que aconteceu depois, nas palavras de Hicheur, parecia ter sido inspirado em um romance de Franz Kafka. Quatro dias após a sua detenção na delegacia, o juiz que o investigava apresentou acusações contra ele, decretou a investigação formal e ordenou que ele fosse enviado para a prisão de Fresnes. Pela lei francesa, juízes lideram a investigação de crimes. A acusação contra Hicheur é uma das mais comuns em casos relacionados ao terrorismo na França. Apesar de não haver acusação concreta de nenhum ato de terror — planejado ou executado – contra Hicheur, sua detenção provisória em Fresnes durou quase três anos, com limitado acesso ao mundo exterior. Um grupo de apoio composto por cientistas divulgou uma declaração condenando o estilo “Guantanamo” de encarceramento no caso de Hicheur.
A polícia da Suíça, onde ele viveu e trabalhou até ser preso, investigou-o e não encontrou nenhuma evidência contra ele.
Os chefes de Hicheur na Suíça e no Brasil são só elogios a ele e rejeitam categoricamente que o físico seja culpado. Aurelio Bay, um cientista suíço que foi seu chefe no Grupo de Altas Energias do EPFL, em Lausanne, nos enviou um email ressaltando a sua crença na inocência de seu subordinado. “A Polícia Federal da Suíça averiguou tudo sobre a vida dele em Lausanne. Não encontraram nada. Eles acharam apenas papeis e contas velhas, copos sujos e discos rígidos que não tinham nada,” disse Bay. “Adlène deveria escrever um livro. O ataque é a melhor forma de defesa”, opiniou Bay.
Política do terrorismo
Em um dia chuvoso, mas quente, no Rio, Adlène Hicheur não esconde que sua mãe, de 68 anos e doente, domina a sua mente. “Você não imagina o que a minha mãe passou quando eu estava na prisão por causa de acusações falsas e o que ela está sentindo agora que estou sendo perseguido novamente no Brasil por algo que não fiz”, lamentou.
Hicheur está triste e desapontado, mas ele não caiu na tentação de mergulhar no sentimentalismo. O cenário do que aconteceu em 2009 e o que está acontecendo agora está claro em sua cabeça. De fora, a França parece um país de primeiro mundo com uma robusta democracia e respeito pelos direitos humanos. Mas uma pessoa que cresceu em bairros empobrecidos e com muitos imigrantes tem uma percepção diferente do que seja o Estado francês. Nesta parte da França invisível, direitos são violados frequentemente, conta Hicheur. Ele acredita que foi alvo do governo de direita de Nicolas Sarkozy, por ser um cidadão francês de origem argelina e muçulmano. “Logo que eu fui levado para a delegacia, o ministro do Interior da França, Brice Hortefeux, declarou que eles haviam ‘feito um grande avanço’. Eu o vi na delegacia. Este ministro foi condenado por racismo. Ele estava com tanta pressa que queria me condenar antes mesmo de me acusar formalmente”, lembra o cientista, citando o comentário racista de Hortefeux, amigo próximo de Sarkozy, contra um homem de origem argelina, em setembro de 2009. Em abril do ano seguinte, este ministro foi multado em €750 por um tribunal francês devido a comentários racistas.
Em 2012, a popularidade de Sarkozy despencava. Assim, não foi coincidência, analisa Hicheur, que seu julgamento tivesse ocorrido apenas três semanas antes do primeiro turno das eleições presidenciais na qual Sarkozy encarou uma dura disputa e perdeu para Francois Hollande. “Meu julgamento acabou em apenas duas tardes, depois de me manter na prisão por 30 meses. Esta foi a forma de Sarkozy mostrar que havia capturado um perigoso terrorista”, disse Hicheur, que foi condenado a cinco anos de prisão em 5 de maio, apenas um dia antes do último turno do pleito presidencial. Logo após o veredito, seu advogado, Baudouin, classificou o julgamento de “escandaloso”.
Hicheur diz que a matéria da revista Época distorceu os fatos e ignorou detalhes cruciais que indicariam a sua inocência. Em 2009, antes de ser preso por visitar “websites de conversas subversivas islâmicas”, Hicheur estava seriamente doente, tomando medicação. “Durante aquele período eu passei seis meses entre hospitais, médicos, fisiologistas, reumatologistas e finalmente na casa de meus pais para me recobrar dos problemas nas costas e no nervo ciático”, conta Hicheur, que afirmou ter passado naquela época por um “período de turbulência”.
Hicheur diz que a revista quis apresentar os 35 e-mails e conversas online como algo novo. “Não há nada novo nisso”, afirma ele. Em seu julgamento, a acusação apresentou isso como evidência de sua culpa, mas Hicheur afirma que este é o elemento mais fraco do caso. Em uma sala de bate-papo virtual lotada de participantes com pseudônimos, Hicheur expressava livremente suas visões políticas sobre tudo o que acontecia no mundo islâmico. Depois que a sala de bate-papo foi hackeada _ acredita ele _ por algum serviço de inteligência, Hicheur passou a trocar email com um interlocutor chamado “Phoenix Shadow”. Segundo ele, nenhum dos dois estava ciente da identidade real de ambos. Durante os dois dias de julgamento em 2012, a acusação afirmou que “Phoenix shadow” era na verdade Mustapha Debchi, um alegado integrante da Al Qaeda do Mahgreb.
Mas a acusação nunca conseguiu estabelecer a conexão entre o pseudônimo, o número de protocolo de internet de seu computador e Debchi, segundo Hicheur. “O nome Mustapha Debchi foi mencionado desde que eu fui preso sem nenhuma prova de minhas ligações com ele”, explicou. “Então, de repente, em setembro de 2011, eles anunciaram que o haviam capturado em fevereiro daquele ano, na Argélia, que o haviam interrogado e que a informação que constava do arquivo era de que tratava-se de ‘Phoenix Shadow’. “Mas Debchi não foi levado ao tribunal e nem indiciado, mesmo estando no centro desta alegada associação comigo. Ou seja, a culpa nunca foi estabelecida”, detalha Hicheur. “Se ele foi preso em fevereiro, porque eles mantiveram esta informação secreta até setembro?”, questiona o cientista. Então, ele oferece a resposta: “Porque em outubro de 2011 eu completaria dois anos de detenção provisória e eles não poderiam de me manter preso por mais tempo”.
A maioria dos resultados das buscas na internet sobre Mustapha Debchi estão ligados ao julgamento de Adlène Hicheur. “Minha correspondência com ‘Phoenix Shadow’ foi toda em árabe, mas o que produziram no tribunal foram trechos daqui e dali, fora do contexto e distorcidos, todos traduzidos muito mal para o francês. Eles estavam desesperados para me levar a julgamento e mostrar que eu era culpado”, afirmou.
Hicheur deixou a prisão depois de ter decidido não recorrer do veredito. “Desafiar o veredito significava ficar na prisão por mais um ano, além do tempo do julgamento. Não há como conseguir justiça. Eu iria apodrecer na cadeia. Eu queria voltar a ensinar e a pesquisar. Quando eles me disseram que eu poderia voltar para casa, eu senti que poderia renascer. A prisão é o túmulo dos vivos, como diz uma poesia em árabe. Eu sobrevivi lá dentro por causa da minha educação e da minha maturidade”, contou.
Jogo mentais
Prisão nunca é um lugar prazeroso, mas algumas delas são notórias – historicamente – como Fresnes. Hoje, a guilhotina, que foi usada na França até 1977 está guardada em Fresnes, a maior casa de detenção da França. Durante a Segunda Guerra Mundial, foi usada pela Gestapo. O lugar abrigou os que lutaram pela Frente de Liberação Nacional (Argélia), nos anos 50 e 60, quando eles buscavam a independência da França. Foi no andar térreo da prisão que Hicheur passou 30 meses sem ver o céu aberto. Mas a quase falta de sol não era o maior problema. A polícia tentava quebrá-lo emocionalmente todos os dias, conta Hicheur. “Eles me diziam que eu nunca seria capaz de ensinar novamente e que eu seria obrigado a vender legumes nas ruas. Eles queriam me anular”, diz. “Mas eu estava determinado a resistir a este processo de desumanização”.
A sua determinação eram os livros que ele não apenas devorava para manter sua sanidade, mas apresentava a outros prisioneiros. Ele discutia os livros em uma espécie de Café Filosófico na biblioteca da prisão, que podia frequentar uma vez por semana.
Hicheur herdou o amor pelos livros de seu pai, um operário da construção civil. Quando ele e seu irmãos eram pequenos, o pai os levou ao canteiro de obra para mostrar como era uma vida dura. Se os meninos não estudassem íam acabar como ele, advertia. A educação era a salvação, repetia o pai. “Meu pai era um homem politicamente consciente. Apesar de ter sido um operário, ele sempre falava sobre livros, cultura e política com a gente”, lembrou. “E graças à minha educação, eu sobrevivi na prisão”, constatou.
O refúgio na prisão se dava através de livros dos mais variados: de física, cultura, espiritualidade e poesia árabe. Mesmo na loucura da cadeia, onde os prisioneiros brigavam uns com os outros por causa de um cigarro, ele manteve sua ligação com o mundo acadêmico. “Uma de minhas orientandas de doutorado me enviou um capítulo de sua tese para que eu corrigisse. Eu fiquei tão feliz em corrigir. Eu vi que poderia ainda me manter em dia com a Física”, conta.
Em Fresnes ele fez amizades com outros detentos. Seu apelido entre os prisioneiros era “Google” porque era capaz de responder a todos os tipos de perguntas — de neutrinos à religião. “Eles queriam me ver fora dali”, conta Hicheur, entusiasmado, comparando sua condição com a do Batman no filme O Cavaleiro das Trevas Ressurge” onde Bruce Wayne é detido mesmo estando com um problema nas costas, mas escapa com o apoio dos outros presos. “Eu estava na mesma condição, na cadeia, com dor nas costas, mas contando com a torcida dos outros presos para sair”, riu.
Bruce Wayne escapou devido à sua força extraordinária, mas o que mantém o espírito de Hicheur positivo são sua crença e suas orações. Muçulmano praticante, ele adora falar sobre tradições islâmicas de ensino na matemática e química durante a Era Medieval. Seu interesse pela ciência e pelo conhecimento vem desta tradição. Ele manteve sua mente aberta na prisão interagindo com os outros detentos, ensinando o que podia e também aprendendo com eles. “Você deve se beneficiar da sabedoria de onde ela vier”, afirma, citando o profeta Maomé.
Estava chovendo enquanto Hicheur falava sem parar, respondendo as perguntas. Mas quando o sol começou a se por, ele se levantou: “Eu preciso rezar”, diz, tirando seu tapetinho de nylon. Vai para o escritório, desenrola o tapete no chão e faz suas orações.
O recomeço
Em maio de 2012, logo que ele saiu da prisão, Hicheur comprou um computador, instalou alguns programas e começou a fazer ciência de novo. Ele estava ávido para voltar a trabalhar. Logo voltou ao CERN como integrante do laboratório de Lausanne e até fez uma viagem ao Brasil para um curto período no Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF). Mas em maio de 2013, um ano após a sua libertação da prisão, ele foi proibido de entrar na Suíça (decisão válida até 2018) como resultado de uma ordem administrativa da polícia daquele país, apesar de a justiça suíça ter encerrado o caso, por falta de provas. Hicheur sugere que esta decisão foi tomada por pressão da França. “Eles queriam ter certeza de que eu não seria capaz de trabalhar como cientista nunca mais na minha vida. Eles sempre me falavam isso na cadeia”, lembra Hicheur, com olhar preocupado.
Mas mesmo com esta proibição e estando no Brasil, ele continuou colaborando com o CERN, o que faz até hoje. Ao saberem da campanha contra ele no Brasil, seus colegas europeus mais próximos reagiram revoltados. “Hicheur já pagou alto preço por sua correspondência online com alguém alegadamente da Al Qaeda. Nunca cometeu, direta ou indiretamente, qualquer ato terrorista ou criminoso. Cumpriu sua sentença e estava trabalhando pacificamente no Brasil”, afirma através de um email que nos enviou, a física italiana Monica Pepe Altarelli, do experimento LHCb do qual ele faz parte. Ela também é vice-porta-voz do CERN. “É admirável que o Brasil tenha oferecido ao professor Hicheur a possibilidade de retornar à sua carreira científica, beneficiando-se, assim, de suas elevadas qualidifcações como cientista e professor. O artigo publicado pela revista Época não está baseado em fatos e é inconsistente com a aberta tradição humanitária do Brasil”, afirma ela , com o respaldo de outros colegas que trabalharam de perto com ele, como os cientistas Pierlugi Campana, do Laboratori Nazionali dell’INFN de Frascati (Itália), e ex-porta voz do experimento LHCb, e o suíço John Ellis, professor de Física Teórica do King’s College, em Londres, integrante do CERN.
Com os portões do CERN fechados para Hicheur, ele começou a olhar além da Europa para procurar trabalho. Seus colegas o ajudaram e ele encontrou a oportunidade de renascer no Brasil, um país que ele sempre admirou por sua rica história, “pela política externa independente” e pela cultura de ativismo da sociedade civil. Depois de obter o visto do consulado brasileiro em Genebra, processo que demorou mais de 30 dias, devido a toda a sequência de verificações de seu caso, ele desembarcou aqui em maio de 2013 e começou a trabalhar no CBPF. A partir de junho de 2014, passou a trabalhar na UFRJ.
Apesar de ter crescido na França, Hicheur manteve os laços com sua cidade, Setif, na Argélia, que sua família costumava visitar sempre. Acostumado com as montanhas, o calor tropical e as praias do Rio são um choque térmico, mas ele se adaptou. Depois de algumas semanas vivendo em um apartamento em Copacabana, mudou-se para uma rua da Tijuca e começou a descobrir a cidade. “Eu adoro andar na Floresta da Tijuca. É tão bom ser parte da natureza” diz ele, que gosta também de montanhismo.
Devido à sua limitação no domínio do português, no início ele só pesquisava. Mas no segundo semestre de trabalho na UFRJ, já havia começado a dar aulas, no nível da graduação, sobre sustentabilidade das energias renováveis e física experimental. Seus colegas da UFRJ aplaudem a contribuição que o professor Hicheur tem dado à ciência e ao ensino no Brasil. O professor do Instituto de Física, Leandro Salazar de Paula, a quem Hicheur é subordinado no grupo de pesquisa no qual trabalha, define: “Ele é um excelente pesquisador, simplesmente brilhante”. Segundo ele, se Adlène Hicheur deixar o país “será uma grande perda para o nosso programa de pesquisa”. O professor argelino atua em várias linhas de pesquisa. “Somos nove pesquisadores e estamos perdendo o mais atuante”, lamentou Leandro de Paula.
O segundo “julgamento” de Adlène Hicheur
Apesar de o contrato de Hicheur valer até junho, ele decidiu deixar o país, desapontado com tudo o que aconteceu e com a falta de apoio do governo. Sua paz no Brasil foi abalada em outubro do ano passado quando ele foi abordado por policiais à paisana em uma rua perto de sua casa. “Eu entrei em pânico. Você pode pensar que eu sou paranoico mas por causa da minha experiência terrível na França eu não sabia quem eram estes homens e o que eles queriam de mim”, conta. Eram da Polícia Federal. Queriam conversar com Hicheur sobre um incidente na Masjid e Nur, uma mesquita da Tijuca frequentada por ele.
Em janeiro de 2015, poucos dias após o ataque terrorista à sede da revista Charlie Hebdo, em Paris, uma equipe da CNN da Espanha foi à mesquita para fazer uma filmagem. Coincidentemente — ou não — , enquanto a equipe filmava, um homem que nunca frequentou o local apareceu diante das câmeras e tirou a sua camiseta para revelar uma bandeira do grupo terrorista Estado Islâmico, impressa em uma outra camiseta que havia por debaixo. Isso, segundo a polícia contou para ele, fez com que se investigasse todos os frequentadores da mesquita, inclusive o próprio Hicheur. “Eu não estava nem no Brasil naquele dia. Estava na Europa passando férias com a minha família”, lembra. “Não há nada contra mim por parte da polícia brasileira”, assegura. De fato, Hicheur tem em mãos um certificado de antecedentes criminais datado de 14 de janeiro: “A Polícia Federal certifica, após pesquisa no sistema nacional de investigação criminal, que até a data de hoje (14 de janeiro) não há registro de antecedentes criminais em nome de Adlène Hicheur”, diz o atestado ao qual tivemos acesso.
Após a divulgação da reportagem da Época, o ministro da Educação, Aloizio Mercadante, afirmou que uma pessoa “condenada por terrorismo” deveria ter sido impedida de entrar no país. O ministro sinalizou ainda que o governo iria averiguar seu status legal no país.
Os acadêmicos mais próximos de Hicheur criticaram esta declaração, mas isso fez com que o pesquisador decidisse desistir da oportunidade que o Brasil havia oferecido a ele para reconstruir a sua vida. “Não me deixaram opção”, disse. Ele contou que está desapontado e sentindo-se traído. “Cheguei aqui legalmente. Vim para trabalhar e contribuí com a física aqui . Agora sou forçado a deixar o país”, lamentou. “O que fizeram com ele no Brasil é um linchamento inaceitável. Ele passou mais de um ano ocupando um escritório do lado do meu. Conversei muito com ele sobre a prisão, sobre política no Oriente Médio e outros temas. Ele sempre criticou grupos terroristas, inclusive o Estado Islâmico. Aí uma revista semanal veio com uma matéria que prefiro nem usar adjetivo… e ele viu seu tremendo esforço para reconstruir sua vida científica desabar. A isso adiciona-se uma declaração de um ministro e ele passa a se sentir ameaçado. Não quer ser espancado e humilhado novamente. Entrou pela porta da frente e quer sair pela porta da frente”, disse Ronald Shellard, diretor do CBPF. “Ele é um muçulmano bastante fiel, com um senso muito agudo de honra, respeito e dignidade, completou. “Se o Adlène for embora, ou pior, for expulso, isso significará a derrota definitiva de tudo por que nossa geração lutou durante a ditadura militar, de todos os princípios de direitos humanos”, opinou Shellard. Sobre o caso francês, já encerrado, Shellard diz que pelo o que sabe “ele foi condenado por seus pensamentos que estão em um disco rígido. Isso me faz lembrar o livro ‘1984’, de George Orwell”, concluiu.
Ignacio Bediaga, chefe do grupo LHCb no CBPF, ex-chefe de Hicheur nesta instituição, antes de ele trabalhar na UFRJ, diz que o que aconteceu com o físico argelino foi um linchamento. “Adlène foi submetido a um linchamento pela revista Época e pela declaração do ministro. Adlène foi contratado pela UFRJ, ou seja, pelo governo brasileiro. Agora dizem que ele não é bem-vindo. Isso é preconceito porque ele é um cientista muçulmano”, criticou Bediaga.
Hicheur ainda não havia decidido seu destino até hoje, dia 18 de janeiro. Ele parou de lecionar na UFRJ porque o assédio da mídia não permitiria mais essa função. Mas continua a desempenhar suas tarefas de pesquisador, e tem dois artigos científicos para tocar. Mesmo sob este ataque, hoje está apresentando a análise de dados para um destes artigos, sobre uma partícula subatômica rara e pouco conhecida chamada “Bc”. Esta apresentação foi feita em vídeo conferência para 700 cientistas internacionais que participam de seu grupo de experimento e que vão corroborar o artigo assinado por ele.
“Estou sendo julgado no Brasil por algo que já me julgaram na França”, protestou Hicheur, afirmando tratar-se de um caso de islamofobia. “Meu caso deve ser visto dentro do contexto da França. Se você tirar o Islã da equação, não há problema. Eu sou apenas um caso entre muitas pessoas perseguidas por serem muçulmanas”, lamentou, acrescestando que não esperava que isso fosse acontecer no Brasil, um país que ele sempre admirou.
Isso o faz voltar à política. Em sua visão, alguns países ocidentais estão punindo as nações muçulmanas. Hicheur diz que nunca apoiou nenhuma forma de violência e acrescenta que na internet, em suas conversas online, sempre se recusou a fazer parte de qualquer atividade violenta. “Eu sou contra a violência. Eles não deviam interferer nos nossos países. Eles não deveriam promover a guerra em nossos países. Eles encurralam as pessoas e elas acabam reagindo. Aí dizem que elas são violentas”, observou.
‘Eu estou a 10 mil quilômetros de Paris, mas ainda assim estou ao alcance deles. Eles estão me quebrando de novo. Onde posso ir?”, pergunta, refletindo sobre onde poderá tentar reconstituir sua vida mais uma vez.
Ele fica em silêncio por alguns minutos, parecendo pensativo. “Se você está vivendo bem, eles não aceitam. Eles haviam me avisado que eu não voltaris a fazer ciência. O Brasil me deu este espaço. Pelo menos, pude provar que consegui voltar à ciência”, diz Hicheurs, andando pela sala, com um sorriso melancólico no rosto.

Florência Costa é jornalista freelancer, ex-correpondente na Rússia e na Índia e autora do livro “Os Indianos” (Editora Contexto). Shobhan Saxena é jornalista indiano, baseado em São Paulo, e contribui para o website internacional “The Wire”, para o jornal “Times of India” e para a BBC em Hindi.

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