terça-feira, 14 de agosto de 2012

A Carta Magna está sob ataque nos EUA e no mundo


A Carta Magna está sob ataque nos EUA e no mundo

Recentes decisões da Corte Suprema dos EUA incrementam o enorme poder político das grandes corporações e dos super ricos, golpeando com maior força ainda os vestígios vacilantes de uma democracia política. Enquanto isso, a Carta Magna sofre ataques mais diretos. Recordemos a Lei do Habeas Corpus de 1679, que proibia a “prisão em alto mar” e, com isso, o procedimento impiedoso de prisão no estrangeiro com o fim de torturar. O conceito de devido processo legal ampliou-se com a campanha internacional de assassinatos da administração Obama, de modo que esse elemento central da Constituição se tornou nulo e vazio. O artigo é de Noam Chomsky.

(*) Segunda parte do artigo "Como a Carta Magna se tornou uma carta menor.

Pessoas sagradas e processos inacabados

A emenda 14 posterior à Guerra Civil garantia os direitos de pessoa aos antigos escravos, embora ainda em teoria. Ao mesmo tempo, criava uma nova categoria de pessoas com direitos: as grandes empresas. De fato, quase todos os casos relativos à décima quarta emenda que terminaram nos tribunais tinham a ver com direitos empresariais, e há quase um século já haviam determinado que essas ficções legais coletivistas, estabelecidas e sustentadas pelo poder de Estado, possuíam plenos direitos, como as pessoas de carne e osso. Na realidade, trata-se de direitos bastante mais amplos, dadas as suas escala, imortalidade e proteções de responsabilidade em relação a suas dimensões, imortalidade e proteções de responsabilidade limitada.

De acordo com os “acordos de livre comércio”, a Pacific Rim pode, por exemplo, acionar El Salvador pelo fato de o país tentar proteger o meio ambiente. Os indivíduos não podem fazer tal coisa. A General Motors pode reclamar direitos nacionais no México. Não há necessidade de se preocupar sobre o que aconteceria se um mexicano exigisse direitos nacionais nos Estados Unidos.

No plano interno, as recentes decisões da Corte Suprema incrementam o enorme poder político das grandes corporações e dos super ricos, golpeando com maior força ainda os vestígios vacilantes de uma democracia política operativa.

Enquanto isso, a Carta Magna sofre ataques mais diretos. Recordemos a Lei do Habeas Corpus de 1679, que proibia a “prisão em alto mar” e, com isso, o procedimento impiedoso de prisão no estrangeiro com o fim de torturar: o que hoje se chama mais educadamente de “entrega”, como quando Tony Blair entregou o dissidente líbio Abdel Hakim Belhaj, hoje dirigente da rebelião, à misericórdia do Coronel Kadafi; ou quando as autoridades estadunidenses deportaram o cidadão canadense Maher Arar para a sua Síria natal, para ser encarcerado e torturado, reconhecendo só posteriormente que não havia acusação alguma formada contra ele. E muitos outros, amiúde através do aeroporto de Shannon, o que provocou diversos protestos na Irlanda.

O conceito de devido processo legal ampliou-se com a campanha internacional de assassinatos da administração de Barack Obama, de modo que esse elemento central da Carta de Direitos (e da Constituição) se tornou nulo e vazio. O Departamento de Justiça explicou que a garantia constitucional do devido processo legal, que remonta à Carta Magna, requer agora unicamente as deliberações internas do poder Executivo. O advogado constitucional da Casa Branca mostrou-se de acordo com isso. O rei João Sem Terra teria assentido com satisfação.

A questão foi suscitada depois do assassinato, a mando do presidente, por meio de aviões não tripulados, de Anuar al-Awalaki, acusado de incitar a jihad, por escrito, e de ações não determinadas. Um jornalista do New York Times captou bem a reação geral da elite, quando ele foi assassinato num ataque com aviões não tripulados, junto aos habituais danos colaterais. Rezava a sua manchete: “Ocidente celebra a morta de um clérigo”. Alguns levantaram as sobrancelhas pois se tratava de um cidadão estadunidense, o que suscitava questionamentos sobre o devido processo legal...considerados irrelevantes quando se assassina concidadãos às vistas do chefe do Executivo. E irrelevante, também, de acordo com as inovações legais sobre o devido processo legal, levadas a cabo na administração Obama.

Também se deu uma nova e útil interpretação à presunção de inocência. Como informa o New York Times, “Obama adotou um método discutido para contar as baixas civis sem esconder os dedos. Conta com efeito como combatentes mortos todos os homens em idade militar na zona de ataque, de acordo com diversos funcionários da administração, a menos que existam dados de inteligência que de forma póstuma demonstrem que se trata de inocentes”. De modo que a determinação de inocência posterior ao assassinato mantém sagrado o princípio da presunção de inocência. 

Seria descortês recordar das Convenções de Genebra, cimentos da lei humanitária moderna. Elas proíbem que “se leve a cabo execuções sem juízo prévio, pronunciado por um tribunal regularmente constituído, que permita todas as garantias judiciais que se conheçam como indispensáveis pelos povos civilizados”.

O caso célebre mais recente de assassinato cometido pelo Executivo foi o de Osama Bin Laden, assassinado depois de ter sido detido por 79 comandos da marinha, indefeso, acompanhado apenas de sua esposa e com o corpo jogado ao mar sem autópsia. Pense-se o que quiser, ele era um suspeito e nada mais que um suspeito. Até o FBI concorda com isso.

A celebração neste caso foi assombrosa, mas ele suscitou muitas perguntas a respeito do rechaço desavergonhado do princípio da presunção de inocência, sobretudo quando um julgamento era apenas impossível. Foram objeto de dura condenação. A mais interessante foi a de Matthew Yglesias, comentarista respeitado da esquerda liberal, que explicava que “uma das principais funções da ordem institucional internacional consiste precisamente em legitimar o uso de uma força militar mortífera por parte das potências ocidentais”, de maneira que se torna “assombrosamente ingênuo” sugerir que os EUA tenham de obedecer ao Direito Internacional ou outras condições que exigimos com retidão aos mais débeis.

Só se pode oferecer objeções táticas à agressão, ao assassinato, à ciberguerra ou a outras ações que o Santo Estado leva a cabo a serviço da humanidade. Se as vítimas tradicionais veem as coisas de um modo um tanto diferente, isso simplesmente revela seu atraso moral e intelectual. E ao crítico ocidental ocasional, que não chega a compreender essas verdades fundamentais pode-se desconsiderá-los como “tontos”, explica Yglesias, referindo-se decerto a mim, e eu confesso alegremente minha culpa.

Na lista de terroristas do poder executivo dos EUA

Por acaso o ataque mais chamativo aos pilares das liberdades tradicionais foi o pouco conhecido caso Holder, que a administração Obama levou à Suprema Corte. Neste caso, contra o Projeto de Direito Humanitário [Humanitarian Law Project], condenou-se o projeto por ele recomendar a “assistência material” à organização guerrilheira PKK, que tem lutado, durante muitos anos, pelos direitos dos curdos na Turquia e figura na lista dos grupos terroristas do poder executivo dos EUA. A “assistência material” consistia em assessoria legal. A redação da sentença parecia aplicar-se de forma muito ampla, por exemplo, a debates e petições de investigações, inclusive a aconselhar à PKK a abrir mão dos meios violentos. Mais uma vez existia um espaço que dava margem à crítica, mas até isso aceitava a legitimidade do lista de terroristas do estado: decisões arbitrárias do Executivo, sem recurso. 

O histórico da lista de terroristas guarda um certo interesse. Assim, por exemplo, em 1988, a administração Reagan declarou que o Congresso Nacional Africano era um dos “grupos terroristas mais destacados” do mundo, a fim de que Reagan pudesse manter seu apoio ao regime do apartheid e sua depredação assassina da África do Sul e aos países vizinhos, como parte de sua “guerra contra o terror’. Vinte anos depois, o Congresso saiu da lista de terroristas e hoje podem viajar, os seus membros, aos EUA, sem visto especial.

Outro caso interessante é o de Saddam Hussein, eliminado da lista de terroristas em 1982, para que a administração Reagan pudesse apoiá-lo na sua invasão do Irã. Esse apoio continuou intenso depois de encerrada a guerra Irã-Iraque. Em 1989, o presidente Bush chegou até a convidar engenheiros nucleares iraquianos aos EUA para lá fazerem a sua formação avançada em produção de armas, outra informação que há de ser afastada dos olhos “dos intrometidos e ignorantes”.

Um dos exemplos mais feios do uso da lista de terroristas tem relação com o povo torturado da Somália. Imediatamente após o 11 de setembro, os EUA capturaram a rede somali de assistencialismo Al-Barakaat, com base na tese de que ela financiava o terrorismo. Essa conquista foi saudada como um dos grandes êxitos da “guerra contra o terror”. Em contraste, a retirada um anos depois das acusações, por falta de fundamento oferecido por Washington, gerou pouco interesse.

Al-Barakaat era responsável por cerca da metade dos 500 milhões de dólares de remessas a Somália, “mais de o que qualquer setor econômico do país e dezes vezes a quantidade de ajuda exterior que a Somália recebe”, segundo determinou uma investigação das Nações Unidas. A organização assistencialista também administrava negócios de importância, na Somália. E todos foram destruídos. O mais destacado especialista acadêmico da “guerra financeira contra o terror”, Ibrahim Warde, conclui que, além de destroçar a economia, este frívolo ataque contra uma sociedade muito frágil “pode ter desempenhado seu papel na ascensão dos...fundamentalistas islâmicos”, outra consequência familiar na guerra contra o terror.

A ideia mesma de que seja o Estado que deva gozar da autoridade de emitir tais juízos é uma grave ofensa à Carta de Direitos, como o é o fato de que se considere tal autoridade indiscutível. Se a queda em desgraça da Carta segue tendo lugar nesses últimos anos, o futuro dos direitos e das liberdades se mostra obscuro.

Quem rirá por último?

Algumas palavras finais sobre a Carta do Bosque. Seu programa consistia em proteger a fonte de sustento da população, os bens comuns, dos poderes externos: no começo, da realeza britânica; com o passar dos anos, as cercas e outras formas de privatização por parte das corporações predadoras e das autoridades do Estado, que cooperam com elas, não se fez mais do que acelerar-se e recompensarem-se de acordo. Os danos são amplos.

Se escutamos hoje as vozes do sul podemos chegar a saber que a “conversão dos bens públicos em propriedade privada mediante a privatização do entorno é nossa, cuja gestão, se não é comum, é um modo mediante o qual as instituições neoliberais eliminam os elos frágeis que mantém as nações africanas unidas. A política foi hoje reduzida a uma empresa lucrativa na qual se contemplam principalmente os retornos de investimentos antes da atividade que possa contribuir para a reconstrução de entornos, comunidades e nações enormemente degradadas. Esta é uma das vantagens dos programas de ajuste estrutural infligidos ao continente: o enraizamento da corrupção”. Cito o poeta e ativista nigeriano Nnimmo Bassey, presidente da Amigos da Terra Internacional, em sua revelação dilacerante sobre o saque das riquezas africanas, To Cook a Continent [Cozinhando um Continente], última fase da tortura ocidental na África.

Tortura que se planejou, sempre no mais alto nível, deve-se admiti-lo. No final da Segunda Guerra Mundial, os EUA ostentavam uma posição de poder global sem precedentes. Não é de surpreender que tenham feito planos cuidadosos e sofisticados a respeito de como organizar o mundo. A cada região do planeta se atribuiu uma “função” por parte dos estrategistas do Departamento de Estado, encabeçados pelo distinto diplomata George Kennan. Ele determinou que os EUA não tinha interesse especial na África, de modo que devia entregar-se o continente a Europa para ser “explorada” – o termo é sujo – para a sua reconstrução. À luz da história, poderíamos ter imaginado uma relação diferente entre Europa e África, mas não há indicações de que tal coisa tenha sido em momento algum considerada.

Mais recentemente, os EUA reconheceu que também deveriam somar-se ao jogo de exploração da África, junto aos novos participantes, como a China, que se mostra muito diligente em seu trabalho de acumular uma das piores histórias de destruição do meio ambiente e de opressão das vítimas desventuradas.

Deveria ser desnecessário estender-se sobre as extremas ameaças que um perigo central das obsessões predadoras que estão ocasionando calamidades representa para todo o mundo: a dependência dos combustíveis fósseis, que nos expõe a um desastre global, talvez num futuro não muito distante. Pode-se discutir os detalhes, mas há poucas dúvidas sérias de que os problemas sejam graves, se não impotentes, e que, quanto mais tardemos em os determos, tanto mais terrível será a herança que deixaremos às próximas gerações. Há alguns esforços para encarar a realidade, mas são os menores. A recente Conferencia Rio+20 abriu-se com aspirações magras e concluiu com resultados irrisórios.

No entanto, a concentração de poder tem implicações nocivas para o país mais rico e poderoso da história mundial. Os republicanos do Congresso estão desmantelando as limitadas regulações ambientais iniciadas na gestão de Richard Nixon, pois essas seriam algo como um perigo radical na cena política hoje. Os principais grupos de lobby corporativo anunciam abertamente as suas campanhas de propaganda para convencer a opinião pública de que não é o caso preocupar-se indevidamente...com certo efeito, vide as pesquisas de opinião.

A mídia coopera quando não informa sequer as previsões cada vez mais graves das agências internacionais e até do Departamento de Energia dos EUA. O informe tradicional consiste num debate entre alarmistas e céticos: de um lado estão praticamente todos os cientistas qualificados e, de outra, alguns denegadores que resistem. Não formam parte do debate um grande número de experts, entre os que se encontram no programa de mudança climática do MIT, além de outros, que criticam o consenso científico por ser demasiado conservador e precavido, com o argumento de que a verdade sobre a mudança climática é muito mais aterrorizadora. Não é de se surpreender que opinião pública se mostre confusa.

Em seu discurso sobre o Estado da União em janeiro, Obama saudou as perspectivas brilhantes de um século de autossuficiência energética, graças às novas tecnologias que permitem a extração de hidrocarburetos de areias alcatroadas, xisto e outras fontes antes inacessíveis. Outros estão de acordo: o Financial Times prognostica um século de independência energética para os EUA. A informação menciona as repercussões locais destrutivas dos novos métodos. O que não se faz nesses prognósticos otimistas é a pergunta: que tipo de mundo sobreviverá a esse ataque predatório?

Na linha de frente quando se lida com esta crise em todo o mundo estão as comunidades indígenas, que sempre defenderam a Carta do Bosque. A posição mais sólida tem sido a adotada pelo único país em que os indígenas governam, a Bolívia, o país mais pobre da América do Sul, vítima, durante séculos, da destruição ocidental dos ricos recursos de uma das sociedades mais avançadas do hemisfério, antes de Colombo.

Após o ignominioso fracasso da cúpula sobre mudança climática de Copenhage, em 2009, a Bolívia organizou uma Cúpula dos Povos, com 35 mil participantes, de 140 países, não apenas representantes de governos, mas também da sociedade civil e ativistas. Elaborou um Acordo dos Povos, que clamava por uma fortíssima redução da emissões de gases, e por uma Declaração Universal da Mãe Terra. Trata-se de uma exigencia chave das comunidades indígenas do mundo inteiro. Os ocidentais sofisticados a ridicularizam, mas ao menos algo de sua sensibilidade poderíamos adquirir, pois é provável que eles sejam os últimos a rir, um riso lúgubre de desespero.

Tradução: Katarina Peixoto

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