domingo, 26 de agosto de 2012

Poesia contra o moedor de carne humana na Pauliceia Desvairada



Terceira Semana de Cultura Motoboy aberta na cadência irada de rap, em meio aos versos de quem faz a cidade fluir mas é rasgado por ela — e está cada vez mais consciente disso
Por Gustavo Paiva, da Ação Educativa
“Eu rodo por aí, para lá e para cáDe manhã, no sol, na chuva, eu saio para trampar.Eu não nasci em berço de ouro. Se liga bacana,Eu atuo na profissão que tritura carne humana.Motoboy responsa, correria o dia inteiro.Não arrisco minha vida para chegar primeiro.Para ganhar o pão, conto com a sorte.Sou um sobrevivente que desliza pelo corredor da morte.”
O alerta feito em rimas é de Marcelo Veronez, o Poeta dos Motoboys, em poema recitado no sarau de abertura da terceira edição da Semana de Cultura Motoboy, na quarta-feira (22), em São Paulo. A categoria, que é a periferia do trânsito e do mercado de trabalho na Pauliceia Desvairada, se mobiliza para mostrar sua cultura e sua arte em prosa, verso e canção, em evento que integra a Mostra e Seminário Estéticas das Periferias – Arte e cultura nas bordas da metrópole.De acordo com Eliezer Muniz, o Neka – líder do Canal*MOTOBOY, que organiza o evento -, a Semana tem o objetivo de levar cultura para uma categoria que só cresce em todo o Brasil e que está sempre vulnerável, seja pela violência das ruas, avenidas e estradas do país, pela precariedade das condições de trabalho, ou por serem alvo de preconceito de outros motoristas, da polícia e do poder público.
“Terça-feira passada, um tremendo sufoco
Carrocinha amarela para pegar cachorro louco
O guarda olhou para minha motoca e começou a dar risada
Ele achou a magrela um tanto encorpada.
- Eu nunca vi Turuna 80 com motor de Estrada.
- Então você não viu nada, tá tudo normal.
Comprei lá nas bocas, tenho nota fiscal, na General.
- Você é cara de pau, olha esse painel, olha o escapamento,
Olha o pneu careca e o licenciamento.
A casa caiu vou prender seu documento
-Pode prender que eu tiro depois
Enquanto isso vou rodando, porque eu tenho dois.
Meu cabrito não berra, eu quero a paz, não a guerra.
Eu levo sua pizza, entrego sua mensagem
Percorro em um segundo os quatro cantos da cidade.
Observe com atenção que você vai perceber 
Sou cenário da cidade que não para de crescer.”
Dados de 2009 do Sindicato dos Mensageiros Motociclistas, Ciclistas e Moto-Taxistas do Estado de São Paulo (Sindimoto) apontam que o Brasil é o país do mundo com o maior número de motoboys, cerca de 900 mil profissionais. Só na capital paulista, são 200 mil, dos quais apenas 20% trabalham com carteira assinada.
De acordo com Veronez, cerca de 40% da categoria é formada por jovens entre 18 e 24 que não têm preparação para atuar na profissão e que encontram no frete sobre duas rodas uma opção para conseguir seu sustento.  Para eles, o poeta leva sua mensagem em versos, na esperança de que a força da poesia reverbere em seu cotidiano:
“Vou deixar um recado para os moleques das Dream
Fiquem atentos, ligeiros. Aprendem um velho macete
Ao invés de drogas na cabeça, usem sempre o capacete.
Porque o perigo não dá trégua, nem sequer um momento.
E pode te encontrar em qualquer cruzamento.”
Homem e máquina no chão
Em todos os raps, poemas e contos declamados naquela noite foram recorrentes as histórias de acidentes sofridos e de perdas de colegas de profissão. “Que entrega é essa que vale uma vida?” questiona o poeta em sua fala de abertura. “A economia motoboy movimenta uma grana e é um moedor de carne humana”, diz.
A constatação veio após mais uma tragédia. Numa tarde de segunda-feira, enquanto deslizava pelas ruas da cidade, Veronez se deparou com a cena típica: ferro retorcido, homem no chão, ambulância e curiosos. Mais um irmão tinha tombado. O então motoboy viu um amigo ter uma perna decepada no acidente e estampou capas de jornais numa foto em que segurava o membro amputado.
O trauma marcou Veronez profundamente. Foi então que ele decidiu abandonar a profissão, mas não a categoria. Hoje trabalha como socorrista do SAMU (Serviço de Atendimento Móvel de Urgência) e ajuda a salvar a vida dos irmãos que encontraram o perigo. Foi também nessa época, pela necessidade de lidar com a dor, que virou poeta. A partir do Coletivo Canal*MOTOBOY, ele e outros tantos poetas começaram a combater a aridez do asfalto, com versos:
“Eu rezo todo dia, pedindo proteção
Capote violento, homem e máquina no chão.
A cena é normal
Ver um mano em coma na UTI de um hospital.
Mas eu não quero ver esta cena nunca mais.
Você e o Poeta dos Motoboys nesta luta pela paz.”
Semana de Cultura Motoboy
Promovido pelo Canal*MOTOBOY, em parceria com a Ação Educativa e o Centro Cultural da Espanha em São Paulo, o evento deste ano contou com diversas atrações, todas gratuitas. Além do sarau de abertura no dia 22, foi realizado, no Centro Cultural São Paulo, o debate Vida de Motoboy, tema que orienta toda a programação deste ano.
A atividade teve a participação de Antoni Abad, Elizabeth Munhoz (Supervisora do Departamento de Educação de Rua da CET), Fábio Magnani (Prof. do Departamento de Engenharia Mecânica da UFPE), Luiz Fernando Bicchioni (Membro da Comissão Julgadora do DSV JARI), Gilberto Almeida dos Santos (Presidente Sindicato dos Mensageiros Motociclistas e Ciclistas de São Paulo) e Katia Ricomini (Diretora Translig Logistica, Transporte e Distribuição Ltda). Na pauta, temas ligados à legislação, segurança, arte e cultura no cotidiano da categoria.
Para encerrar a semana, nesta sexta-feira (24), o Centro cultural da Juventude Ruth Cardoso recebe a festa Poeta dos Motoboys Convida…! , com apresentação dos Grupos Q.I. Do Gueto, Us da Rua, Ponto C e Revolução Periférica. A discotecagem fica por conta do DJ Erry-g.

Canal*MOTOBOY
O Canal*MOTOBOY é um projeto idealizado pelo artista plástico espanhol Antoni Abad como parte do megafone.net, por meio do qual grupos em situação de risco são convidados a expressar suas experiências em encontros presenciais e por meio de celulares e aplicativos que se convertem em megafones digitais.
Em São Paulo, o megafone.net se uniu a um coletivo de motoboys e motogirls, percorrendo espaços públicos e privados da cidade e transformando-os em cronistas de sua própria realidade. O projeto acontece em vários países e cidades, como Cidade do México, Nova York, Montreal, Genebra e Barcelona, entre outros.
Como parte da programação do Estéticas das Periferias, Antoni Abad realizará uma oficina sobre o projeto megafone.net no Sesc Belenzinho, no dia 25, entre 14h e 17h. A atividade é gratuita e a retirada de ingressos começa às 14h.
Leia mais:
  1. Outras Palavras convida para Estéticas da Periferia
  2. Rap, Emicida e a alma lavada das quebradas
  3. Uma história que já vivemos por aí
  4. Entrevistamos Criolo na abertura de “Estéticas das Periferias”

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