Marcela Belchior
Adital
No início deste ano, uma carta aberta dirigida ao arcebispo de Barcelona (Espanha), cardeal Luís Martínez Sistach, circulou entre teólogos, acadêmicos, jornalistas e intelectuais. Nela era denunciado que igrejas locais estariam "tratando de pôr freios" à mensagem libertadora do Papa Francisco, perseguindo líderes difusores do pensamento do Sumo Pontífice, vítimas de um "boicote insidioso".
Os autores da carta eram o sociólogo português Boaventura de Sousa Santos, diretor do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, e a teóloga Teresa Toldy, coordenadora do Observatório da Religião no Espaço Público (Policredos), da mesma instituição, em Portugal. Uma dessas lideranças acossadas pelos setores de oposição ao Papa Francisco seria o escritor e teólogo espanhol Juan José Tamayo, vinculado à Teologia da Libertação.
No documento, Boaventura e Teresa pediam assinaturas em manifestação de solidariedade a Tamayo, que, "de maneira brilhante e audaz, vem lutando por um ecumenismo interreligioso e elaborando uma teologia intercultural, pós-colonial e feminista da libertação". Para entender melhor esse contexto, a Adital entrevistou, com exclusividade, Teresa Toldy. Doutora em Teologia pela Philosophisch-Theologische Hochschule Sankt Georgen (Frankfurt/Alemanha) e presidente da Associação Portuguesa de Teologias Feministas, ela destaca que os dois principais componentes do discurso papal - a a opção clara pelos pobres e a primazia da misericórdia sobre a rigidez doutrinal — constituem dois dos aspectos que merecem a oposição dos setores mais conservadores dentro (e fora) da Igreja.
Teresa Toldy é Doutora na área de Teologia Feminista e leciona em Portugal. Foto: Reprodução. |
ADITAL - Circula a informação de que igrejas locais estariam se organizando para frear a ressonância da mensagem do Papa Francisco, sendo uma das vítimas desse boicote o teólogo espanhol Juan José Tamayo, vinculado à Teologia da Libertação. Como isso está relacionado com a postura que vem assumindo o Sumo Pontífice?
Teresa Toldy - A conferência de Juan José Tamayo era sobre Ignacio Ellacuría, nos 25 anos de aniversário de sua morte. É óbvio que, para os setores conservadores da Igreja, o assassinato do grupo de jesuítas em El Salvador, assim como o de Dom Óscar Romero, continuam a ser algo embaraçoso, que gostariam de varrer para debaixo do tapete, porque é indicativo de um martírio por causa da defesa da justiça num contexto de ditadura de direita.
Ellacuría era um teólogo da libertação, tal como Tamayo também o é, em contextos diferentes, obviamente. O Papa Francisco fala claramente a linguagem da teologia da libertação, desde o início do seu pontificado, desde que apareceu à janela da Basílica de São Pedro despojado de sinais de poder, desde que escreveu a sua primeira Exortação Apostólica "Evangelii Gaudium", à qual ele próprio atribui "um significado programático", com "consequências importantes" (EG 25) e que coloca os pobres no centro da preocupação e ação da Igreja.
Não foi esse o tom nos pontificados anteriores: Bento XVI e Joseph Ratzinger são a mesma pessoa: o teólogo/ideólogo responsável pela repressão das teologias da libertação (e de todas as teologias progressistas — pense-se nas teologias feministas ou inter-religiosas). Não podemos nos esquecer de que foi ele o autor do documento "Libertatis conscientia: Sobre a liberdade cristã e a libertação", de 1986, e que foi durante o Pontificado de João Paulo II que houve toda uma política de substituição de bispos progressistas por bispos reacionários e de silenciamento sistemático de teólogos como forma de refrear as teologias progressistas, nomeadamente, na América Latina, mas não só.
Há muitos na Igreja (não só a hierarquia — diga-se!) que correm, nesse momento, o risco de serem menos abertos do que o Papa, de não estarem conseguindo acompanhar a sua passada. Proibições com a de Tamayo fazer uma conferência sobre Ellacuría parecem ilustrar isso mesmo.
Teólogo Juan José Tamayo é um dos perseguidos pela oposição ao Papa Francisco. Foto: Reprodução. |
ADITAL - Quais os pontos-chaves dessa oposição ao Papa Francisco? De que maneira isso se manifesta?
TT - O Papa Francisco assumiu desde o início do seu pontificado que deseja uma Igreja pobre para os pobres. Para ele, a opção pelos pobres não é uma entre outras. Ele afirma frontalmente: "Está claro que Jesus não nos quer como príncipes que olham com desdém, mas como homens e mulheres do povo. Esta não é a opinião de um Papa, nem uma opção pastoral entre várias possíveis; são indicações da Palavra de Deus tão claras, diretas e contundentes que não precisam de interpretações que as despojariam da sua força interpeladora. Vivamo-las sine glossa, sem comentários.” (EG 271).
E o Papa não só afirma isso, como age desse modo: recebe líderes de movimento sociais, recebeu Gustavo Gutiérrez [fundador da Teologia da Libertação], critica duramente as tendências e as tentações, por exemplo, da Cúria (os 15 pecados da Cúria), entre as quais se encontra "a patologia do poder”, telefona para pessoas em situações de sofrimento, faz de cada Audiência Geral uma festa dos simples.
Essa atitude é marcada pela primazia da misericórdia sobre a doutrina rígida. Critica duramente aquilo que considera "uma suposta segurança doutrinal ou disciplinar, que dá lugar a um elitismo narcisista e autoritário, onde, em vez de evangelizar, se analisam e classificam os demais e, em vez de facilitar o acesso à graça, consomem-se as energias a controlar” (EG 94). Nas suas homilias em Santa Marta, censura frequentemente o farisaísmo e a dureza de coração.
Ora penso que essas duas componentes — a opção clara pelos pobres e a primazia da misericórdia sobre a rigidez doutrinal — constituem dois dos aspectos que merecem a oposição dos setores mais conservadores dentro (e fora) da Igreja. O Sínodo sobre a Família — um momento, aliás, de debate pluralista, como o Papa pediu — constituiu um exemplo vivo da existência de tendências dentro da Igreja que preferem manter posições estáticas (como se tornou claro na questão do acesso dos recasados à comunhão e na questão dos homossexuais).
ADITAL - Como responder a essa ofensiva?
TT - Fazendo caminho sem desistir e tendo paciência. Paciência porquê? Esse Papa é um pastor, um homem com o ouvido colado ao coração dos pobres, um homem que não teme, enquanto Papa, dar exemplos de conversas numa linguagem popular, com o povo. Contudo, é um Papa que parece ser mais conservador, por exemplo, no que diz respeito à moral sexual (ainda que, também aqui, coloque a misericórdia à frente da inflexibilidade dos preceitos morais: basta pensar nas suas palavras acerca dos católicos não deverem procriar como os coelhos e no exemplo que deu de uma mulher que conhecera grávida do oitavo filho e que, em todos os partos, fez uma cesariana. "Isso é irresponsabilidade?". Ela dizia: ‘Eu confio em Deus’, mas eu disse-lhe que Deus nos concedeu os meios para sermos responsáveis").
Também parece ter uma posição não favorável ou, no mínimo, reticente, relativamente ao acesso das mulheres ao ministério ordenado, por exemplo. Como tal, penso que, nesse momento, estamos perante um Papa entre dois fogos: o fogo reacionário (para quem ele é um embaraço e um estorvo) e o fogo progressista impaciente (para quem ele não vai tão longe e tão rapidamente quanto seria desejável).
Considero que, nesse momento, devemos todas e todos contribuirmos sobretudo para que as portas abertas pelo Papa não se fechem — melhor, para que não triunfem os que querem fechá-las: temos de meter um pé na porta, para não deixar fechar. A porta decisiva que se abriu foi a do diálogo pluralista — uma lufada de ar fresco depois de décadas de chumbo! É por esta porta que devemos seguir para continuar a lutar pelas mudanças com as quais sonhamos — inclusivamente, no que diz respeito à questão das mulheres na Igreja, que me é tão cara! Seria desejável um Concílio para debater todas essas questões. Penso que é tempo de "criar uma onda” para que tal possa acontecer — provavelmente, não neste pontificado, mas num próximo.
Francisco supera o tom conservador do pontificado de Bento XVI. Foto: Reprodução. |
ADITAL - A partir da postura de Francisco, que enfatiza a reaproximação da Igreja com os pobres e enuncia um discurso ligado a valores progressistas, a expectativa é que seja superada a fratura de décadas do Vaticano com a Teologia da Libertação. Isto pode representar uma ameaça aos setores mais conservadores da sociedade e, como tal, estimular a ação opositora?
TT - Pode representar uma ameaça, sim. Basta vermos alguns exemplos: o Papa tem sido acusado de ser comunista. Rush Limbaugh, um comentador político estadunidense, próximo do Tea Party,afirmou que o Papa não entende nada de economia e não sabe o que está dizendo quando fala de capitalismo e de socialismo. Tim Worstall escreveu um artigo na Forbes em que diz, essencialmente, o mesmo.Benjamin Powell, diretor do "Free Market Institute da Texas Tech University", afirmou a mesma coisa. A questão é que não estamos falando apenas de opiniões isoladas: estamos falando de indivíduos que dão voz ou que estão ligados a grupos e a instituições relacionadas com políticas de direita e com interesses econômicos.
Outra estratégia é aquela que procura neutralizar a mensagem do Papa Francisco, dizendo que ele diz o mesmo que os Papas anteriores, só que "numa linguagem diferente”. Essa estratégia constitui uma forma de dissolver a novidade e a contundência das suas palavras (veja-se, a título de exemplo, as palavras de John Wauck, um vaticanista membro da Opus Dei).
Ao fim de quase um ano de pontificado, a Rádio Renascença, emissora católica portuguesa, fez um balanço no qual o presidente do seu conselho de gerência, o cônego João Aguiar Campos, frisava essa mesma nota: "a mudança na receptividade à mensagem é operada não tanto pelo conteúdo, mas pela forma. Estamos numa mudança de estilo, pura e simplesmente. Ele é um Papa de continuidade. Todos os Papas são de continuidade, nessa perspectiva. A Igreja tem uma história de 2 mil anos, não dá saltos, não faz erupções nem cortes em sua história. Mas acho importante realçar isso da continuidade, porque o Papa Francisco está revolucionando o modo de dizer, mas não vai revolucionar tudo.
ADITAL - Que desafios a Teologia da Libertação possui neste contexto?
TT - A Teologia da Libertação é desafiada, antes de mais nada, pelo contexto do capitalismo financeiro global em que vivemos e pelas suas consequências para milhões de seres humanos — esta é "uma economia que mata", como diz o Papa. É urgente fazer e divulgar amplamente leituras alternativas à "teologia do mercado” — à ideia da inevitabilidade deste modelo econômico.
Penso que o grande desafio continuará sendo dar voz a vozes que experimentam as consequências desse modelo no seu quotidiano e às vozes dissonantes, à procura de "outros mundos possíveis". No fundo, trata-se de se manter como uma voz profética, conciliando análises competentes com propostas convincentes, à luz do sonho de Deus que habita na fé dos mais frágeis.
ADITAL - Em sua avaliação, o Papa Francisco significa mudanças reais, do ponto de vista teológico e institucional, na relação da Igreja Católica com a sociedade ou, até o momento, essa transformação se localiza apenas no discurso do Santo Padre?
TT - Penso que o Papa está introduzindo mudanças institucionais: embora eu não seja (nem pretenda ser) uma vaticanista, julgo que há sinais da existência de alterações em curso na Cúria, na concessão de governo (veja-se o grupo de cardeais consultores do Papa), no papel dado às igrejas locais (veja-se a escolha de cardeais de "zonas remotas"), no esforço de maior transparência e justiça (pense na questão da pedofilia), bem como numa atitude dialogante de base (veja-se a insistência do Papa, por exemplo, no início do Sínodo sobre a Família, para que a discussão fosse realmente livre e pluralista).
Todos estes aspectos têm impacto positivo na opinião pública e na sociedade, que parece, em geral, ter uma atitude muito positiva em relação a este Papa. Contudo, seria um erro considerar que terá de ser o Papa que fará tudo: é urgente haver transformações e compromisso das igrejas em nível local.
ADITAL - Como você avalia o grau de abertura do Vaticano para que essa mudança sugerida pela postura do Papa Francisco, considerada progressista, se consolide?
TT - Marco Politi, no seu livro "Francesco tra lupi" fala de opositores a Francisco dentro do Vaticano e em conluio com forças exteriores ao Vaticano. Numa entrevista publicada no site do Unisinos [Instituto Humanitas Unisinos – IHU], afirmou o seguinte: "Os lobos são os adversários do Papa Francisco na Cúria e fora da Cúria, mas também no mundo econômico, sobretudo quando aponta seu dedo em nível global contra as injustiças da gestão da economia. Ele não é contra a economia de mercado, mas ataca a gestão dessa economia, sobretudo financeira. Todos aplaudem, mas ninguém dá um passo. Há uma forte resistência passiva ao Papa, no campo econômico, em razão das mudanças que está fazendo na estrutura econômica da Santa Sé, entre outros no IOR, o banco vaticano. Na Itália, há uma série de entrelaçamentos entre monsenhores e gente de negócios, inclusive ex-membros dos serviços secretos".
Contudo, pelos motivos já avançados (as alterações que mencionei na pergunta anterior), penso que haverá quem o suporte. Contudo, mais uma vez, as grandes mudanças na Igreja têm de ser pressionadas pelas bases: o Vaticano não é a Igreja. A Igreja é o povo dos crentes. E este tem de continuar a fazer pressão para que as mudanças se consolidem.
Por isso me referi também à relevância da convocação de um concílio no qual estejam representadas, proporcionalmente, todas as forças vivas da Igreja, bem como membros de todas as outras igrejas cristãs e de outras religiões, assim como consultores exteriores à Igreja, que fazem o percurso humano com todos os cristãos.
Papa enfrenta oposição dentro do Vaticano em conluio com forças exteriores. Foto: Rádio Vaticano. |
ADITAL - E a Igreja Católica em âmbito local (paróquias, dioceses etc.)? Teríamos como avaliar como o clero tem recebido a mensagem do Sumo Pontífice?
TT - É muito difícil fazer esta avaliação: estamos falando de milhares e milhares de paróquias e dioceses. Em alguns países, será difícil passar do imobilismo tradicionalista a uma atitude ativa de saída para a rua, como o Papa quer. Os últimos 30 anos foram gastos tentando enterrar, de forma mais ou menos explícita, o que o Concílio Vaticano II tinha iniciado — a superação do modelo piramidal de Igreja e do centralismo.
Haverá muitas igrejas locais nas quais será difícil interiorizar as palavras do Papa, quando ele diz: "prefiro uma Igreja acidentada, ferida e enlameada por ter saído pelas estradas, a uma Igreja enferma pelo fechamento e a comodidade de se agarrar às próprias seguranças. Não quero uma Igreja preocupada em ser o centro, e que acaba presa num emaranhado de obsessões e procedimentos" (EG 49).
Para se saber o que o clero pensa, realmente, seria preciso que a palavra, realmente, se desatasse dos nós e das teias em que tem estado presa: é preciso superar o medo de perder o lugar, de "perder o posto". É preciso arriscar. É preciso democratizar a Igreja: não no sentido de uma democracia representativa, segundo o modelo ocidental (aliás, já gasto e a mostrar sinais de falência), mas no sentido de uma democracia participativa, melhor, de uma família em que todos têm lugar e em que as diferenças não se traduzem em exclusões, mas sim num enriquecimento de todos.
ADITAL - Quanto aos leigos, temos como perceber essa recepção?
TT - Infelizmente, uma parte do que comentei na pergunta anterior aplica-se aqui também: existe atavismo, rotina. Mas também existem muitas experiências alternativas, rejuvenescidas. Importa fazê-las circular. Penso que a dinâmica gerada pela resposta ao questionário lançado pelo Vaticano para preparar o Sínodo da Família, por exemplo, constitui um sinal do desejo de maior envolvimento de muitos milhares de católicos.
Volto a dizer: é importante meter um pé na porta, para não a deixar fechar. E os leigos deverão desempenhar um papel decisivo neste movimento, de não deixar a Igreja perder o que se está a ganhar com o Papa Francisco: a possibilidade de uma Igreja próxima dos que mais sofrem — não numa atitude caritativa paternalista, mas numa atitude de comunhão profunda. Por isso, também é preciso dar voz àqueles que, dentro da Igreja, têm sofrido formas cruéis de exclusão, por pensarem de maneira diferente, por terem feito opções na sua vida pessoal que os colocaram fora dos círculos eclesiais.
ADITAL - Há diferenças na receptividade da mensagem do Papa Francisco em várias partes do mundo? Podemos apontar quais são e localizá-las?
TT - O Pew Research Center's Religion & Publicpublicou, no passado mês de dezembro, os resultados de um inquérito sobre a imagem do Papa nas diversas regiões do mundo. De acordo com esse inquérito, a imagem do Papa é muito favorável na Europa, nos Estados Unidos e na América Latina, sendo menos favorável na África, na Ásia e no Oriente Médio, regiões nas quais existem percentagens altas de ausência de classificação (respostas do tipo: "nunca ouvi falar", "não posso classificar", "não sei").
Neste quadro geral, importa dizer algo que é relevante para a compreensão da receptividade à mensagem do Papa em contextos diferentes: as problemáticas sociais e eclesiais nas diferentes regiões do mundo são muito diversas. Assim, se na Europa e nos Estados Unidos há uma percentagem elevada de católicos preocupados, por exemplo, com as questões centrais expressas nas reivindicações de movimentos, como o Nós Somos Igreja, focados na reivindicação de direitos de cidadania individual dentro da Igreja (incluindo a questão da ordenação das mulheres, do fim do celibato obrigatório, de uma nova atitude da Igreja face à sexualidade), há outras regiões do mundo em que as questões da justiça social, dos direitos humanos, das perseguições religiosas constituem o fulcro das preocupações dos católicos.
Estas diferentes sensibilidades levam a recepções diferentes da mensagem do Papa: para o primeiro grupo (alguns setores europeus e norte-americanos), ele irá devagar demais. Para outros, ele irá depressa demais (pense-se, por exemplo, na perplexidade com que as afirmações do Papa são recebidas em alguns países do Leste Europeu, nomeadamente, em países saídos de regimes comunistas, nos quais os bispos continuam a referir-se a Bento XVI e a João Paulo II).
Para um terceiro grupo, ele constitui um sinal de confirmação do rumo tomado há décadas (pense-se no acontecimento histórico da recepção dos líderes dos movimentos populares pelo Papa Francisco, no qual este afirmou que "Terra, teto e trabalho — isso pelo qual vocês lutam — são direitos sagrados. Reivindicar isso não é nada raro, é a doutrina social da Igreja".
ADITAL - Considerando a atual conjuntura política internacional do Ocidente, especialmente no que diz respeito ao avanço do pensamento progressista na região latino-americana, como a postura do Papa Francisco dialoga com o pensamento atual?
TT - A coragem com que o Papa denuncia as estruturas de morte da economia capitalista, bem como as exclusões produzidas pela mesma (visibilizadas de forma radicalmente cruel, por exemplo, nos naufrágios em Lampedusa daqueles que tentam entrar na Europa), associada à frontalidade no seu acolhimento dos mais pobres (convidando-os para ocupar o primeiro lugar na fila de cadeiras na audiência geral coincidente com o seu aniversário, por exemplo), dá-lhe a autoridade proveniente da coerência.
A política internacional corre o risco de se afundar num pântano de hipocrisia ditada pela ânsia de fazer sobreviver um modelo econômico que não só mata como está profundamente caduco. O Papa aparece como um líder credível, associando a profundidade das convicções à proximidade com o povo.
Papa Francisco dialoga com as teologias progressistas da América Latina. Foto: Reprodução. |
ADITAL - Com tal postura mais descentralizada e aberta da Igreja Católica, apontando para o rompimento de uma cultura tradicionalista da instituição, os setores conservadores temem uma perda de espaço e de poder por parte da Igreja Católica. Por outro lado, há quem aponte que seja um caminho para que a instituição religiosa se reaproxime dos fieis perdidos nos últimos anos. Seria esse o ponto? Qual o principal ponto dessa problemática?
TT - Esta questão é muito interessante e daria, ela própria, margem para outras tantas perguntas e outras tantas reflexões: a relação da Igreja com o poder. Esta é uma área em que a teologia está investindo a fundo — a área da crítica do "espírito do império", como bem lhe chamam Néstor Míguez, Joerg Rieger e Jung Mo Sung na obra "Beyond the Spirit of Empire" (2009).
É altamente provável que o Papa Francisco constitua uma desilusão para quem gostaria que o mundo continuasse a ser governado pela religião e pelas suas instituições (segundo o modelo de Cristandade, que poderíamos traduzir também pela trilogia "Deus, Pátria, Autoridade”). Não é esse o modelo de Francisco. Penso que esse projeto de uma igreja que antes quer sujar-se na lama dos caminhos do que ficar dentro de portas, a definhar, é aquela que tem futuro junto dos "fieis perdidos nos últimos anos”: esses esperavam um pastor que não tem medo de cheirar às suas ovelhas, para utilizar, de novo, uma expressão de Francisco.
Marcela Belchior
É jornalista da Adital. Mestre em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), estuda as relações culturais na América Latina.
E-mail:
marcela@adital.com.br
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