A Colômbia, de surpresa em surpresa. Até quando?
O presidente Juan Manuel Santos tem surpreendido muita gente, dentro e fora do país. Como se não bastasse ter dado início a uma nova negociação entre governo e as Farc, agora ele reconheceu que o Estado colombiano foi responsável por violações de direitos humanos e delitos no conflito armado. Por Eric Nepomuceno
Eric Nepomuceno
É preciso reconhecer que o governo do presidente colombiano, Juan Manuel Santos, tem surpreendido muita gente, dentro e fora do país. Como se não bastasse ter dado início a uma nova negociação entre governo e as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia, as FARC, a mais antiga guerrilha do continente americano em atividade, agora ele reconheceu o que muita gente sabia mas nenhuma autoridade, nenhum governo, teve a decência de reconhecer.
Disse Juan Manuel Santos, que foi ministro da Defesa do seu antecessor, o lúgubre Álvaro Uribe, que o Estado colombiano foi responsável por violações de direitos humanos e delitos contra o Direito Internacional no conflito armado que há mais de meio século vem corroendo seu país. E que a principal vítima dessas violações e delitos foi a população civil.
A Colômbia vive um momento especialmente delicado. Para que as negociações de paz cheguem a bom porto, quando – e se – chegarem, e tenham validade legal, é preciso mudar uma série de leis. A oposição, a começar justamente pelos grupos obedientes a Uribe, se negam furibundamente a aceitar essa idéia, argumentando que seria o melhor caminho para assegurar a impunidade aos guerrilheiros.
Na verdade, quem teve até agora a segurança cabal de viver impune são os integrantes das forças armadas e da polícia que, conforme admitiu com todas as letras o próprio Santos, ‘em alguns casos por omissão, e em outros, por ação direta’, cometeram esses crimes. E isso, claro, para não mencionar as forças paramilitares.
Num rompante insólito, Juan Manuel Santos reconheceu publicamente que a responsabilidade do Estado colombiano nesse conflito tremendo é maior que a dos outros envolvidos, ou seja, a própria guerrilha: “Nossa função como agentes do Estado é garantir e proteger os direitos de todos os cidadãos”. Qual seja: prender e julgar, e não assassinar, torturar, trucidar, como é ou foi rotina em todas as comarcas deste nosso continente atormentado.
As declarações do presidente coincidem com a divulgação de um relatório estarrecedor elaborado pelo Centro Nacional de Memória Histórica da Colômbia. No relatório aparecem os números do horror: entre 1958 e 2012 foram mortas pelo menos 220 mil pessoas no país, como resultado dos enfrentamentos entre guerrilha e forças do Estado. Dos mortos, 180 mil eram civis, ou seja, não pertenciam a nenhum dos bandos enfrentados. Os chamados ‘desplazados’, ou seja, que foram forçados a abandonar seus lugares e procurarem outro pouso, somam uns quatro milhões e meio. Uma população equivalente à da Costa Rica ou à da Irlanda.
Os números assombrosos vão além: por cada combatente morto, morreram quatro civis. E de cada dez colombianos mortos nos últimos 54 anos, três morreram por causa da guerra civil. Os números, quando chegam a detalhes sobre desaparecidos, crianças forçadas a entrar nas forças de segurança ou na guerrilha, enfim, um inferno sem limites e onde ninguém foi ou é inocente. As atrocidades cometidas pelas forças do Estado são assustadoras. E a guerrilha também agiu de maneira brutal: pelo menos 27 mil pessoas foram seqüestradas e mantidas em condições tenebrosas. Muitas morreram, outras foram mortas.
A verdade é que poucos dos colombianos nascidos ao longo dos últimos 60 anos podem, honestamente, ter uma memória de um país sem guerra. Sem violência. Os números são claros: a imensa maioria dos massacres (59%) foi feita por paramilitares. A guerrilha é responsável por 17%. E os agentes do Estado (sempre que se esqueça que os grupos paramilitares eram formados justamente por militares e policiais) por 8%.
Enfim: a Colômbia cumpre o doloroso trajeto de se encontrar com o próprio passado, e se de reconhecer nele. É a única forma, o caminho único para se chegar à paz. Sem reconhecer a verdade do que aconteceu não se vai a lugar nenhum.
Claro que sem a plena participação das duas forças guerrilheiras que permanecem em atividade do país – além das FARC existe o ELN, o Exército de Libertação Nacional – ninguém vai chegar a nada. Mas também é claro que sem que os inúmeros bandos paramilitares, e, mais ainda, sem que as próprias forças do Estado reconheçam sua parcela de culpa, tampouco se chegará a lugar algum.
Uma parcela importante da opinião pública e a quase totalidade da oposição política exige que a guerrilha assuma sua responsabilidade e purgue sua responsabilidade. Parece justo.
Muito mais justo, porém, será cobrar das autoridades e da Justiça que os agentes do Estado, tanto os que atuaram de maneira formal quanto os informais, os paramilitares, também respondam pelos seus atos, que, agora se sabe, foram muito mais sangrentos que os cometidos pelas forças rebeldes. Muito mais.
É importante lembrar que o país, mais que nunca, precisa alcançar uma paz que antes parecia impossível e agora, embora longínqua, parece possível.
A estas alturas, é razoável – e justo – manter uma determinada margem de desconfiança diante de governantes neoliberais que dão mostras de estarem dispostos a mudar a história, ou seja, devolvê-la ao seu eixo natural. Juan Manuel Santos, presidente da Colômbia, é um caso claro, claríssimo, dessa situação. Se sua política econômica merece críticas, se o seu alinhamento incondicional com os Estados Unidos merece debate, no ponto específico de revisar o passado e terminar um conflito que mantém o país num beco escuro e sem saída o cenário parece positivo.
Vale observar de perto o que ele está fazendo. E registrar que, por mais que se desconfie, nunca antes se havia chegado tão longe. Falta muito, falta uma infinidade de caminho pela frente. Mas até agora o que se caminhou também foi muito, e valeu a pena.
Disse Juan Manuel Santos, que foi ministro da Defesa do seu antecessor, o lúgubre Álvaro Uribe, que o Estado colombiano foi responsável por violações de direitos humanos e delitos contra o Direito Internacional no conflito armado que há mais de meio século vem corroendo seu país. E que a principal vítima dessas violações e delitos foi a população civil.
A Colômbia vive um momento especialmente delicado. Para que as negociações de paz cheguem a bom porto, quando – e se – chegarem, e tenham validade legal, é preciso mudar uma série de leis. A oposição, a começar justamente pelos grupos obedientes a Uribe, se negam furibundamente a aceitar essa idéia, argumentando que seria o melhor caminho para assegurar a impunidade aos guerrilheiros.
Na verdade, quem teve até agora a segurança cabal de viver impune são os integrantes das forças armadas e da polícia que, conforme admitiu com todas as letras o próprio Santos, ‘em alguns casos por omissão, e em outros, por ação direta’, cometeram esses crimes. E isso, claro, para não mencionar as forças paramilitares.
Num rompante insólito, Juan Manuel Santos reconheceu publicamente que a responsabilidade do Estado colombiano nesse conflito tremendo é maior que a dos outros envolvidos, ou seja, a própria guerrilha: “Nossa função como agentes do Estado é garantir e proteger os direitos de todos os cidadãos”. Qual seja: prender e julgar, e não assassinar, torturar, trucidar, como é ou foi rotina em todas as comarcas deste nosso continente atormentado.
As declarações do presidente coincidem com a divulgação de um relatório estarrecedor elaborado pelo Centro Nacional de Memória Histórica da Colômbia. No relatório aparecem os números do horror: entre 1958 e 2012 foram mortas pelo menos 220 mil pessoas no país, como resultado dos enfrentamentos entre guerrilha e forças do Estado. Dos mortos, 180 mil eram civis, ou seja, não pertenciam a nenhum dos bandos enfrentados. Os chamados ‘desplazados’, ou seja, que foram forçados a abandonar seus lugares e procurarem outro pouso, somam uns quatro milhões e meio. Uma população equivalente à da Costa Rica ou à da Irlanda.
Os números assombrosos vão além: por cada combatente morto, morreram quatro civis. E de cada dez colombianos mortos nos últimos 54 anos, três morreram por causa da guerra civil. Os números, quando chegam a detalhes sobre desaparecidos, crianças forçadas a entrar nas forças de segurança ou na guerrilha, enfim, um inferno sem limites e onde ninguém foi ou é inocente. As atrocidades cometidas pelas forças do Estado são assustadoras. E a guerrilha também agiu de maneira brutal: pelo menos 27 mil pessoas foram seqüestradas e mantidas em condições tenebrosas. Muitas morreram, outras foram mortas.
A verdade é que poucos dos colombianos nascidos ao longo dos últimos 60 anos podem, honestamente, ter uma memória de um país sem guerra. Sem violência. Os números são claros: a imensa maioria dos massacres (59%) foi feita por paramilitares. A guerrilha é responsável por 17%. E os agentes do Estado (sempre que se esqueça que os grupos paramilitares eram formados justamente por militares e policiais) por 8%.
Enfim: a Colômbia cumpre o doloroso trajeto de se encontrar com o próprio passado, e se de reconhecer nele. É a única forma, o caminho único para se chegar à paz. Sem reconhecer a verdade do que aconteceu não se vai a lugar nenhum.
Claro que sem a plena participação das duas forças guerrilheiras que permanecem em atividade do país – além das FARC existe o ELN, o Exército de Libertação Nacional – ninguém vai chegar a nada. Mas também é claro que sem que os inúmeros bandos paramilitares, e, mais ainda, sem que as próprias forças do Estado reconheçam sua parcela de culpa, tampouco se chegará a lugar algum.
Uma parcela importante da opinião pública e a quase totalidade da oposição política exige que a guerrilha assuma sua responsabilidade e purgue sua responsabilidade. Parece justo.
Muito mais justo, porém, será cobrar das autoridades e da Justiça que os agentes do Estado, tanto os que atuaram de maneira formal quanto os informais, os paramilitares, também respondam pelos seus atos, que, agora se sabe, foram muito mais sangrentos que os cometidos pelas forças rebeldes. Muito mais.
É importante lembrar que o país, mais que nunca, precisa alcançar uma paz que antes parecia impossível e agora, embora longínqua, parece possível.
A estas alturas, é razoável – e justo – manter uma determinada margem de desconfiança diante de governantes neoliberais que dão mostras de estarem dispostos a mudar a história, ou seja, devolvê-la ao seu eixo natural. Juan Manuel Santos, presidente da Colômbia, é um caso claro, claríssimo, dessa situação. Se sua política econômica merece críticas, se o seu alinhamento incondicional com os Estados Unidos merece debate, no ponto específico de revisar o passado e terminar um conflito que mantém o país num beco escuro e sem saída o cenário parece positivo.
Vale observar de perto o que ele está fazendo. E registrar que, por mais que se desconfie, nunca antes se havia chegado tão longe. Falta muito, falta uma infinidade de caminho pela frente. Mas até agora o que se caminhou também foi muito, e valeu a pena.
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