Para o ex-ministro da Justiça Miguel Reale Júnior, um dos autores do Código Penal, a redução da maioridade penal é uma resposta simplória ao problema da criminalidade dos menores. O caminho seria um esforço coletivo para integrar os jovens carentes à sociedade.
Bia Barbosa E Camila Agustini
Bia Barbosa E Camila Agustini
Para Miguel Reale Júnior, um dos autores do Código Penal e ex-ministro da Justiça, a redução da maioridade penal é uma resposta simplória da sociedade ao problema da criminalidade cometida pelos menores. Segundo ele, a solução para o problema não é a repressão, que já acontece excessivamente em lugares como a Febem. O caminho seria um esforço coletivo do país e do Estado para integrar os jovens carentes à sociedade.
Leia abaixo a íntegra da entrevista que o jurista deu com exclusividade à Agência Carta Maior.
Agência Carta Maior - A discussão da redução da maioridade penal voltou à tona. Na sua opinião é hora de alguma mudança na legislação?
Miguel Reale Júnior - Nunca é hora de mudança quando se está emocionalmente envolvido, sob o impacto de um fato recente. Neste caso, houve a participação de três maiores no crime, mas bastou ter a participação também de um menor para recair sobre os menores em geral o desejo de vingança. É altamente compreensível que os familiares das vítimas se sintam chocados e até promovam movimentos de represália. Isto está dentro do sentimento normal de dor, de necessidade de reparação. Mas não é este o sentimento que pode orientar mudanças legislativas da importância desta, que é uma mudança constitucional. Há muito tempo existem propostas de alteração da Constituição nessa matéria, isso é algo recorrente.
CM - Mas a redução da maioridade penal é uma solução que sempre é apresentada quando há envolvimento de um menor num crime.
MR - Isso é lamentável. Não se olham outras vertentes, outras questões, não se olha para as causas, como se houvesse possibilidade de, num passe de mágica, transformar a criminalidade praticada pelos adolescentes em não-criminalidade em razão da responsabilidade penal reduzida. E os três maiores que participaram do crime não são um exemplo de que repressão penal não leva a uma redução? Eles não deixaram de agir em razão de uma ameaça abstrata. E se você for ver o elenco de pessoas que se encontram presas e que praticam crimes violentos verá que, na sua maioria, elas têm entre 18 e 25 anos.
CM - Qual seria a alternativa correta?
MG - O problema da criminalidade dos adolescentes não tem sido encarado de um ponto de vista preventivo, de medidas que sejam tomadas no conjunto da sociedade. A administração da Justiça, desde a polícia até o sistema prisional e as fundações de menores, não tem condições de enfrentar este problema. É necessária a junção de todos os esforços para que o jovem se sinta acolhido na sociedade. Um dado que a Escola Paulista de Medicina acaba de levantar é que grande parte daqueles que praticam violência doméstica sofreram violência doméstica na sua infância. É essa a resposta que se aprende a dar. É um problema de ordem social e cultural. Reduzir a maioridade não vai adiantar nada. Você só vai pegar os menores entre 16 e 18 anos, que hoje estão indo para a Febem, e colocar no sistema criminal, que já é falido por si só.
CM - O sistema criminal teria condições de suportar esta mudança?
MR - De jeito nenhum. Nem o Judiciário. E não há por quê. Quais são os dados estatísticos de menores praticando crimes violentos? São bem baixos. O número de menores é pequeno perto do de adultos que praticam crimes delituosos. Isso em cidades como São Paulo, onde há quatro milhões de menores carentes. O que reduz a violência, e este é um dado absolutamente incontrastável, é integrar o jovem em uma comunidade organizada. O Jardim Ângela é um exemplo. Este foi considerado o bairro mais violento do mundo e já passou a ser o 16o. Bastaram alguns programas sociais. Fico espantado que queiram resolver as coisas por esta via rápida, que surge à mente daqueles que se revoltam, que estão movidos por um desejo de represália, sem se olhar o problema na sua maior dimensão.
Os menores estão já sendo reprimidos através da internação em casas de contenção, que são verdadeiros infernos, como a Febem, onde o número de monitores envolvidos em violência, em exploração, no próprio assassinato de menores dentro das instituições é alto. A maioridade penal vai intimidar os jovens mais do que isso? Não intimida! O jovem que está indo para a Febem sabe que está indo para um inferno.
Está mais do que provado que repressão não é o caminho. Será que isso não passa na cabeça das pessoas com o mínimo de bom-senso ou elas só querem uma resposta no sentido da vingança? Eu vejo que a realidade do direito penal é o castigo, a sociedade vê isso como retribuição. Mas querer que a retribuição seja idêntica à dos maiores sem perceber que é necessário fundamentalmente um tratamento diverso, que não recolha todos à mesma vala comum, é uma resposta muito simplória.
Além disso, há um motivo muito básico pelo qual eu acho que não poderia haver uma redução da maioridade. Isso contemplaria imediatamente a um setor grande da sociedade e a alguns políticos e tudo o mais, que é mais importante, seria deixado de lado.
CM - Como a reforma das instituições de detenção dos menores.
MR - Sim. Não há a menor preocupação com a questão das casas de contenção. Existem casas que dão certo, que têm 60, 70 menores e que têm um índice excelente de resultados, inclusive de ausência de reincidência. Há uma medida no ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) importantíssima que é a liberdade assistida. Quando promovida por organismos particulares, por ONGs ou pela Igreja o resultado é muito bom. Mas a liberdade promovida pelo Estado, que burocratiza essa assistência, é um desastre!
CM - Alguns países chegaram a reduzir a maioridade penal como combate à criminalidade.
MG - Sim, mas hoje existe uma política na maior parte desses países para elevar a maioridade para os 18 anos, porque a redução não resolveu o problema. Foi o que aconteceu, por exemplo, nos países nórdicos. Hoje há uma campanha em nível internacional no sentido de que a responsabilidade penal seja de 18 anos.
CM - O argumento usado por muitas pessoas que defendem a redução da maioridade é o de que o jovem, aos 16 anos, já tem consciência do crime que está cometendo e por isso deve ser responsabilizado por isso.
MR - O menor hoje é mais atilado, tem mais informações mas, ao mesmo tempo, está muito mais suscetível pela publicidade, pelo modismo, pela necessidade de ser igual aos outros. Isso acontece porque o jovem não tem momentos de reflexão, ele tem um instrutor gelado que é o meio televisivo e só. Hoje, no Brasil, suscita-se igualmente o desejo independentemente das condições; há uma globalização dos desejos. Isso gera um descompasso, uma insatisfação. Ao lado disso, há uma sociedade agressiva, de muitos conflitos. Na ausência do Estado, a resposta que se aprende é a de resolver as coisas pelas próprias mãos.
CM - Qual o fundamento para se estabelecer a maioridade aos 18 anos?
MR - Nesse instante, até os 18 anos, é que o jovem se encontra num processo de formação e de escolha da capacidade de decisão sobre a sua própria vida. Ele pode ter consciência, o que ele não tem é condição de se autodeterminar, porque está muito mais suscetível às influências, às condutas dos outros, do que quem já tem 18 anos. E quando este jovem não pode contar com a família para protege-lo, o Estado é que tem que suprir isso, através do esporte, da cultura, do teatro, da pintura, de manifestações culturais. O Estado tem que dar condições de desenvolvimento de personalidade a essa juventude que está largada. Isso é um processo que demora.
CM - Como o Estado pode tratar os jovens que tenham características extremamente violentas, como este que se envolveu no assassinato do casal em Embu?
MR - Num casos desses, é preciso ver o perfil, analisar psicologicamente o quadro do jovem e estabelecer um tratamento personalizado. Os autores dos crimes violentos precisam, sem dúvida nenhuma, de uma atenção pessoal. Hoje não é dado nada por parte do Estado. Que acompanhamento psicológico você tem quando joga um jovem na Febem, onde há 500 menores recolhidos dentro de cubículos onde prevalece a violência, entre os internos e a própria administração? A violência vai continuar sendo a resposta aprendida. Você vai estar ensinando mais violência, mesmo dentro da Febem. Imagine dentro do sistema penitenciário...
CM - Mas esses casos são taxados como perdidos pela sociedade.
MR - Mas nem sempre é assim. Você tem casos de pessoas que praticaram os atos mais nocivos e que depois apresentam uma conduta completamente diferente. Os fatos modificadores do comportamento humano são inesperados. Às vezes o nascimento de um filho ou abraçar uma religião muda o comportamento de uma pessoa. Então não é dizer que quem pratica um crime está marcado para o resto da vida. A sociedade marca essas pessoas e depois não quer que o marcado reaja. Eu compreendo que o país esteja chocado, mas o Estado não pode reagir como se fosse a vítima. O Estado tem que agir dentro de um plano de racionalidade e de avaliação de todas as vertentes.
Leia abaixo a íntegra da entrevista que o jurista deu com exclusividade à Agência Carta Maior.
Agência Carta Maior - A discussão da redução da maioridade penal voltou à tona. Na sua opinião é hora de alguma mudança na legislação?
Miguel Reale Júnior - Nunca é hora de mudança quando se está emocionalmente envolvido, sob o impacto de um fato recente. Neste caso, houve a participação de três maiores no crime, mas bastou ter a participação também de um menor para recair sobre os menores em geral o desejo de vingança. É altamente compreensível que os familiares das vítimas se sintam chocados e até promovam movimentos de represália. Isto está dentro do sentimento normal de dor, de necessidade de reparação. Mas não é este o sentimento que pode orientar mudanças legislativas da importância desta, que é uma mudança constitucional. Há muito tempo existem propostas de alteração da Constituição nessa matéria, isso é algo recorrente.
CM - Mas a redução da maioridade penal é uma solução que sempre é apresentada quando há envolvimento de um menor num crime.
MR - Isso é lamentável. Não se olham outras vertentes, outras questões, não se olha para as causas, como se houvesse possibilidade de, num passe de mágica, transformar a criminalidade praticada pelos adolescentes em não-criminalidade em razão da responsabilidade penal reduzida. E os três maiores que participaram do crime não são um exemplo de que repressão penal não leva a uma redução? Eles não deixaram de agir em razão de uma ameaça abstrata. E se você for ver o elenco de pessoas que se encontram presas e que praticam crimes violentos verá que, na sua maioria, elas têm entre 18 e 25 anos.
CM - Qual seria a alternativa correta?
MG - O problema da criminalidade dos adolescentes não tem sido encarado de um ponto de vista preventivo, de medidas que sejam tomadas no conjunto da sociedade. A administração da Justiça, desde a polícia até o sistema prisional e as fundações de menores, não tem condições de enfrentar este problema. É necessária a junção de todos os esforços para que o jovem se sinta acolhido na sociedade. Um dado que a Escola Paulista de Medicina acaba de levantar é que grande parte daqueles que praticam violência doméstica sofreram violência doméstica na sua infância. É essa a resposta que se aprende a dar. É um problema de ordem social e cultural. Reduzir a maioridade não vai adiantar nada. Você só vai pegar os menores entre 16 e 18 anos, que hoje estão indo para a Febem, e colocar no sistema criminal, que já é falido por si só.
CM - O sistema criminal teria condições de suportar esta mudança?
MR - De jeito nenhum. Nem o Judiciário. E não há por quê. Quais são os dados estatísticos de menores praticando crimes violentos? São bem baixos. O número de menores é pequeno perto do de adultos que praticam crimes delituosos. Isso em cidades como São Paulo, onde há quatro milhões de menores carentes. O que reduz a violência, e este é um dado absolutamente incontrastável, é integrar o jovem em uma comunidade organizada. O Jardim Ângela é um exemplo. Este foi considerado o bairro mais violento do mundo e já passou a ser o 16o. Bastaram alguns programas sociais. Fico espantado que queiram resolver as coisas por esta via rápida, que surge à mente daqueles que se revoltam, que estão movidos por um desejo de represália, sem se olhar o problema na sua maior dimensão.
Os menores estão já sendo reprimidos através da internação em casas de contenção, que são verdadeiros infernos, como a Febem, onde o número de monitores envolvidos em violência, em exploração, no próprio assassinato de menores dentro das instituições é alto. A maioridade penal vai intimidar os jovens mais do que isso? Não intimida! O jovem que está indo para a Febem sabe que está indo para um inferno.
Está mais do que provado que repressão não é o caminho. Será que isso não passa na cabeça das pessoas com o mínimo de bom-senso ou elas só querem uma resposta no sentido da vingança? Eu vejo que a realidade do direito penal é o castigo, a sociedade vê isso como retribuição. Mas querer que a retribuição seja idêntica à dos maiores sem perceber que é necessário fundamentalmente um tratamento diverso, que não recolha todos à mesma vala comum, é uma resposta muito simplória.
Além disso, há um motivo muito básico pelo qual eu acho que não poderia haver uma redução da maioridade. Isso contemplaria imediatamente a um setor grande da sociedade e a alguns políticos e tudo o mais, que é mais importante, seria deixado de lado.
CM - Como a reforma das instituições de detenção dos menores.
MR - Sim. Não há a menor preocupação com a questão das casas de contenção. Existem casas que dão certo, que têm 60, 70 menores e que têm um índice excelente de resultados, inclusive de ausência de reincidência. Há uma medida no ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) importantíssima que é a liberdade assistida. Quando promovida por organismos particulares, por ONGs ou pela Igreja o resultado é muito bom. Mas a liberdade promovida pelo Estado, que burocratiza essa assistência, é um desastre!
CM - Alguns países chegaram a reduzir a maioridade penal como combate à criminalidade.
MG - Sim, mas hoje existe uma política na maior parte desses países para elevar a maioridade para os 18 anos, porque a redução não resolveu o problema. Foi o que aconteceu, por exemplo, nos países nórdicos. Hoje há uma campanha em nível internacional no sentido de que a responsabilidade penal seja de 18 anos.
CM - O argumento usado por muitas pessoas que defendem a redução da maioridade é o de que o jovem, aos 16 anos, já tem consciência do crime que está cometendo e por isso deve ser responsabilizado por isso.
MR - O menor hoje é mais atilado, tem mais informações mas, ao mesmo tempo, está muito mais suscetível pela publicidade, pelo modismo, pela necessidade de ser igual aos outros. Isso acontece porque o jovem não tem momentos de reflexão, ele tem um instrutor gelado que é o meio televisivo e só. Hoje, no Brasil, suscita-se igualmente o desejo independentemente das condições; há uma globalização dos desejos. Isso gera um descompasso, uma insatisfação. Ao lado disso, há uma sociedade agressiva, de muitos conflitos. Na ausência do Estado, a resposta que se aprende é a de resolver as coisas pelas próprias mãos.
CM - Qual o fundamento para se estabelecer a maioridade aos 18 anos?
MR - Nesse instante, até os 18 anos, é que o jovem se encontra num processo de formação e de escolha da capacidade de decisão sobre a sua própria vida. Ele pode ter consciência, o que ele não tem é condição de se autodeterminar, porque está muito mais suscetível às influências, às condutas dos outros, do que quem já tem 18 anos. E quando este jovem não pode contar com a família para protege-lo, o Estado é que tem que suprir isso, através do esporte, da cultura, do teatro, da pintura, de manifestações culturais. O Estado tem que dar condições de desenvolvimento de personalidade a essa juventude que está largada. Isso é um processo que demora.
CM - Como o Estado pode tratar os jovens que tenham características extremamente violentas, como este que se envolveu no assassinato do casal em Embu?
MR - Num casos desses, é preciso ver o perfil, analisar psicologicamente o quadro do jovem e estabelecer um tratamento personalizado. Os autores dos crimes violentos precisam, sem dúvida nenhuma, de uma atenção pessoal. Hoje não é dado nada por parte do Estado. Que acompanhamento psicológico você tem quando joga um jovem na Febem, onde há 500 menores recolhidos dentro de cubículos onde prevalece a violência, entre os internos e a própria administração? A violência vai continuar sendo a resposta aprendida. Você vai estar ensinando mais violência, mesmo dentro da Febem. Imagine dentro do sistema penitenciário...
CM - Mas esses casos são taxados como perdidos pela sociedade.
MR - Mas nem sempre é assim. Você tem casos de pessoas que praticaram os atos mais nocivos e que depois apresentam uma conduta completamente diferente. Os fatos modificadores do comportamento humano são inesperados. Às vezes o nascimento de um filho ou abraçar uma religião muda o comportamento de uma pessoa. Então não é dizer que quem pratica um crime está marcado para o resto da vida. A sociedade marca essas pessoas e depois não quer que o marcado reaja. Eu compreendo que o país esteja chocado, mas o Estado não pode reagir como se fosse a vítima. O Estado tem que agir dentro de um plano de racionalidade e de avaliação de todas as vertentes.
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