quarta-feira, 31 de julho de 2013

Como no Brasil, ou onde está Amarildo?


Como no Brasil, ou onde está Amarildo?

O caso do desaparecimento do pedreiro Amarildo, no Rio de Janeiro, explicitou que a transição política brasileira se efetivou apenas de forma parcial, e que o processo caracteriza-se muito mais por continuidades do que por rupturas com a ordem autoritária-ditatorial. Por Caroline Silveira Bauer

O escritor gaúcho Luiz Fernando Veríssimo publicou, no início da década de 1980, o belíssimo texto “Como na Argentina”, quando corpos de opositores políticos, que foram lançados desacordados em alto-mar pela ditadura argentina – nos chamados voos da morte –, começaram a ser devolvidos pelo mar às costas argentina, uruguaia e brasileira, chegando até a praia do Hermenegildo, no sul do Rio Grande do Sul. Dizia Veríssimo, “não é fácil eliminar um corpo. Uma vida é fácil. Uma vida é cada vez mais fácil. Mas fica o corpo [...] fica a memória. Ficam os parentes. Ficam as mães. Os desaparecidos não desaparecem. Sempre há alguém sobrando, sempre há alguém cobrando.”

Passados mais de 25 anos do fim da ditadura civil-militar, a ação das polícias civil e militar continuam orientadas e perpetuando práticas repressivas como o sequestro, a tortura e as execuções sumárias. Trata-se de uma evidência, reconhecida pelas mais diversas esferas do poder público. 

Porém, nas últimas duas semanas, uma palavra e uma prática que caracterizaram as ditaduras de segurança nacional do Cone Sul voltou a ser amplamente pronunciada (sem que tivesse deixado de existir na realidade das periferias brasileiras): desaparecido. Sabe-se que os desaparecidos existem, os de ontem e os de hoje; mas não se sabe o que são: vivos ou mortos? Eles simplesmente “não estão”, como diria o general argentino Videla. O desaparecimento de Amarildo, morador da favela da Rocinha, no Rio de Janeiro, coloca novamente em discussão a ausência-presença dos desaparecidos e a continuidade das práticas repressivas ditatoriais na democracia.

O desaparecimento foi o método repressivo mais sofisticado das estratégias de implantação do terror dessas ditaduras latino-americanas. Empregado em todos os países da região, era considerado uma prática perfeita, porque, dentro de sua lógica desumana, não havia vítimas; logo, tampouco culpados nem delitos. Além disto, impossibilitava qualquer recurso legal que assegurasse a integridade física ou a liberdade da pessoa, pois o desaparecimento pressupunha uma série de medidas como o silêncio sobre as prisões. Sem informações sobre quem e para onde havia levado a vítima, em que circunstâncias tudo ocorrera e como se encontrava, seus parentes não se sentiam impotentes e paralisados.

Parte de sua sofisticação deve-se, também, ao potencial de estender aos familiares e ao entorno social os efeitos das torturas físicas e psicológicas infligidas às vítimas – o efeito multiplicador do terror. A perpetuação da angústia e da incerteza geradas pelo desconhecimento sobre o destino do preso – o que configura o desaparecimento como um crime que não termina de ocorrer – foi um dos principais fatores geradores do medo e do silêncio nas sociedades, que foram obrigadas a viver com as contradições da presença-ausência e da existência-inexistência dos desaparecidos. Paradoxalmente, também foi responsável pela formação de redes de apoio e denúncia e da mobilização de familiares em organizações, que buscavam denunciar os desaparecimentos e buscar informações sobre seus parentes, mas também procuravam conforto e tentavam reestruturar suas identidades – já que não sabiam se eram órfãos, viúvos, etc.

Na manhã desta quarta-feira, a ONG Rio de Paz promoveu uma intervenção na praia de Copacabana, Rio de Janeiro, onde modelos com rostos e corpos envoltos em um tecido transparente simbolizavam os desaparecidos de ontem e hoje, perguntando à sociedade e aos governos em todas as suas instâncias: onde está Amarildo?

Amarildo se transformou, nas últimas duas semanas, em “nosso” Julio López, ex-preso político que desapareceu na Argentina em 2006, um dia após prestar um contundente depoimento que contribuiu para a condenação à prisão perpétua de Miguel Etchecolatz, um repressor lotado na província de Córdoba. Quando há desaparecidos políticos – entendidos não somente como opositores políticos, mas vítimas de uma política de extermínio estatal – na democracia, fica a dúvida: que democracia é esta? E que Estado é este que desaparece com seus cidadãos? Não se sabe o paradeiro de Amarildo desde o dia 13 de julho; nada se sabe de Julio López desde 17 de setembro de 2006. A quem interessa o silêncio das autoridades e a morosidade nas investigações?

Amarildo explicitou que a transição política brasileira se efetivou apenas de forma parcial, e que o processo caracteriza-se muito mais por continuidades do que por rupturas com a ordem autoritária-ditatorial. Basta uma simples conferência nos artigos constitucionais que versam sobre a segurança pública, provavelmente a responsável por seu desaparecimento. Amarildo também colocou em xeque as políticas de memória e reparação, nos moldes da justiça de transição: o Brasil ainda não conseguiu se desfazer do entulho autoritário da ditadura, e a impunidade continua sendo o corolário do perpetuamento da estratégia repressiva sequestro, tortura, morte, desaparecimento.

Veríssimo termina seu texto com as seguintes frases: “Os corpos brotam da terra, como na Argentina. Mais cedo ou mais tarde os corpos brotam da terra, como na Argentina. Mais cedo ou mais tarde os mortos brotam da terra.” Mais cedo ou mais tarde, Amarildo e os outros desaparecidos políticos da ditadura brotarão da terra e cobrarão suas dívidas com a democracia, com a cidadania, e com esta sociedade autoritária que legitima ações policiais como esta.

(*) Caroline Silveira Bauer é professora de História Contemporânea na Universidade Federal de Pelotas. Doutora pela Universidade Federal do Rio Grade do Sul e pela Universitat de Barcelona, é autora do livro "Brasil e Argentina: ditaduras, desaparecimentos e políticas de memória".


Fotos: Agência Pública 

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