"Entendemos que os pontos críticos do novo modelo urbano são as políticas de mobilidade baseadas no transporte individual, a política habitacional regulada exclusivamente pelo capital privado e a atração de megaeventos como alavanca para projetos desenvolvimentistas. Os três entrelaçados estão produzindo cidades mais privadas, mais fragmentadas, menos solidárias e de pior qualidade de vida"
Paulo Roberto Rodrigues Soares
Paulo Roberto Rodrigues Soares
Outras questões se agregaram aos protestos brasileiros: a mobilização contra as isenções fiscais e os gastos públicos para a Copa do Mundo
A visibilidade do país por conta da Copa das Confederações foi aproveitada de modo inteligente e eficaz pelos movimentos de contestação que utilizaram os momentos prévios aos jogos para reunir milhares de pessoas com suas diferentes bandeiras. Não abordaremos aqui os desdobramentos políticos posteriores ao movimento de contestação nas ruas brasileiras. Nos limites deste artigo preferimos apontar três pontos referentes ao modelo urbano que está se implantando no país no último decênio, o qual ainda não conseguiu conciliar (é o projeto?) crescimento econômico e ligeira redistribuição da renda com bem-estar e qualidade de vida nas cidades.
Entendemos que os pontos críticos do novo modelo urbano são as políticas de mobilidade baseadas no transporte individual, a política habitacional regulada exclusivamente pelo capital privado e a atração de megaeventos como alavanca para projetos desenvolvimentistas. Os três entrelaçados estão produzindo cidades mais privadas, mais fragmentadas, menos solidárias e de pior qualidade de vida. Bem ao contrário do que poderíamos esperar de um efetivo programa de reforma social.
A crise de mobilidade é resultante da debilidade das políticas de planejamento e investimento no transporte público e de uma opção de crescimento econômico baseado no consumo de massas, na construção civil e na indústria automobilística (um quarto pilar é a exportação de commodities, que transcende os limites deste artigo). A política de financiamento e isenção de impostos para a aquisição de automóveis, sem os devidos investimentos em infraestrutura urbana, levou ao congestionamento das vias de circulação nas grandes e médias cidades. É o problema das políticas corporativas. Incentiva-se apenas um setor industrial visando que este seja o “motor” da economia. As consequências são sentidas no médio prazo. Ao primeiro sinal de fadiga do setor, a economia como um todo trava. Vão-se os benefícios da política. Ficam os prejuízos (congestionamentos, poluição, acidentes de trânsito).
Quanto ao transporte público novamente são propostas medidas pouco eficazes no longo prazo. Combate-se os resultados e não a raiz da questão. A política de desoneração para as empresas do setor não irá solucionar os problemas. Os mesmos empresários rentistas que lucram com a desorganização das linhas e com a extensão urbana continuarão a gerir o sistema. É preciso promover uma ampla discussão de uma política nacional de mobilidade urbana, que incentive o transporte público, promova a diversidade de modais de deslocamento nas cidades, desde os individuais (bicicletas, por exemplo) até os mais modernos e que exigem grandes investimentos (VLTs, trens, metrô).
Mas é preciso entender a mobilidade na sociedade contemporânea. Nossas cidades, cujo planejamento é herdado do período fordista, necessitam de outra compreensão de planejamento e mobilidade. E esta deve começar por um conjunto de perguntas: o que é a mobilidade hoje? Quem se move nas cidades? Por que nos movemos? As desregulações do capitalismo flexível e da “modernidade líquida” nos colocaram em estado de constante “mobilização geral”. Hoje todos se movimentam em diferentes horários e direções. Aliado a isso, a produção da metrópole e da cidade pós-moderna, mais extensa, mais fragmentada e policêntrica provocou a ruptura dos padrões tradicionais de mobilidade. Mas continuamos presos aos velhos paradigmas de cidade. Por isso é preciso repensar a mobilidade em seus aspectos econômicos, sociais e culturais. As novas tecnologias de informação devem ser utilizadas para promover o planejamento inteligente da circulação urbana. As redes sociais devem ser utilizadas para o planejamento e a gestão participativa da mobilidade, o que pode ser realizado em tempo real nos momentos de crise geral do sistema. É um caminho: democratização e participação.
A expansão da indústria imobiliária se dá pela disponibilidade de crédito e um amplo programa de produção habitacional (o Programa Minha Casa Minha Vida). Entretanto, nosso programa habitacional deixou de ser uma política de Estado para se tornar mais uma fonte de acumulação privada. Especula-se com a terra urbana e com o preço dos imóveis. Os projetos são aprovados a bel prazer dos investidores, facilitados por municipalidades ávidas por resultados de investimentos e geração de empregos. O modelo de produto imobiliário hegemônico combina verticalização desenfreada, condomínios fechados e grandes conjuntos habitacionais na periferia, ressuscitando o antigo modelo de expansão periférica dos anos 1960-1970. A densificação dos centros e a extensão dos perímetros urbanos encarecem a infraestrutura urbana e incidem justamente na questão da mobilidade. Resultados: densificação nociva das áreas mais centrais, periferias homogêneas e segregadas, cidades menos coesas e mais fragmentadas.
Frente a todos os problemas gerados temos a Copa do Mundo de 2014 e os Jogos Olímpicos de 2016. Com eles a utilização de fundos públicos, seja na forma de investimentos diretos, seja nas isenções fiscais aos grandes grupos econômicos envolvidos. Estádios de futebol e instalações esportivas suntuosas são construídos com diferentes formas de financiamento público. Obras de infraestrutura urbana (re)valorizam setores das cidades permitindo a apropriação da renda diferencial urbana pelo capital imobiliário.
Ao mesmo tempo temos os impactos perversos da desagregação de comunidades pelas remoções e deslocamentos (“involuntários”) de populações dos setores urbanos valorizados pelas obras. Estas remoções se fazem em nome do “interesse geral” da cidade nas obras relacionadas aos megaeventos. É notório que os governos locais estão aproveitando os megaeventos como aceleradores de projetos de infraestrutura, bem como para alterações e/ou afrouxamento dos marcos reguladores da produção do espaço urbano (planos diretores, leis de zoneamento, instrumentos urbanísticos). Acrescentem-se também as políticas de “higienização” das cidades, de ordenamento controlado dos espaços públicos, convertidos em espaços de vigilância permanente e a militarização da questão urbana empreendida pelos governos locais em associação com os governos estaduais e federal. Tudo isto respondendo aos “cadernos de encargos” e à “privatização do território” imposta pelas corporações esportivas. Chamamos aqui de privatização do território, porque as intervenções vão além das arenas esportivas e de seus espaços públicos circundantes. Praticamente toda a cidade está incluída na “zona de controle”.
E todo este processo se realizando com pouca ou nenhuma transparência, com total ausência de democracia local, apesar dos instrumentos do Estatuto da Cidade que prevêem a participação popular e gestão democrática das cidades.
Um caso particular é o de Porto Alegre, cidade com longa e aguerrida tradição de lutas sociais e democracia participativa. Aqui a oposição ao “novo modelo urbano” de “cidade-empresa” vem crescendo nos últimos anos após um período de estagnação das mobilizações sociais. São iniciativas independentes, fragmentadas, mas que neste momento conseguiram se conciliar em oposição ao novo projeto de cidade que se impõe. Movimentos pela mobilidade urbana, pela ocupação pública dos espaços públicos, contra a sociedade controle, movimentos ecológicos e pela qualidade de vida nos bairros, além de movimentos populares pela moradia se (re)encontraram na Praça Montevideo em uma nova e ampla coalizão de forças sociais. O futuro dirá se esta nova corrente será capaz de reverter as tendências de privatização da cidade e de submissão da gestão urbana aos interesses de corporações e grupos privados.
Enfim, o risorgimento dos movimentos de massa no Brasil é, sobretudo, um levante pelo “direito à cidade”. Pelo direito de participar e decidir na elaboração, discussão e implementação das políticas urbanas. Pelo direito a construir e viver em cidades feitas por e para o interesse público e não pelos interesses privados.
Finalizamos com David Harvey e sua conclusão do artigo “O direito à cidade” (2008):
“Dar um passo adiante para unificar estas lutas supõe adotar o direito à cidade como slogan prático e ideal político, porque o mesmo coloca a questão de quem domina a conexão necessária entre urbanização e produção e utilização do excedente. A democratização deste direito e a construção de um amplo movimento social para torná-lo realidade são imprescindíveis se os despossuídos vierem a recuperar o controle sobre a cidade que durante tanto tempo estiveram privados e desejam instituir novos modelos de urbanização (…) a revolução tem que ser urbana, no mais amplo sentido do termo, ou não será”.
E todo este processo se realizando com pouca ou nenhuma transparência, com total ausência de democracia local, apesar dos instrumentos do Estatuto da Cidade que prevêem a participação popular e gestão democrática das cidades.
Um caso particular é o de Porto Alegre, cidade com longa e aguerrida tradição de lutas sociais e democracia participativa. Aqui a oposição ao “novo modelo urbano” de “cidade-empresa” vem crescendo nos últimos anos após um período de estagnação das mobilizações sociais. São iniciativas independentes, fragmentadas, mas que neste momento conseguiram se conciliar em oposição ao novo projeto de cidade que se impõe. Movimentos pela mobilidade urbana, pela ocupação pública dos espaços públicos, contra a sociedade controle, movimentos ecológicos e pela qualidade de vida nos bairros, além de movimentos populares pela moradia se (re)encontraram na Praça Montevideo em uma nova e ampla coalizão de forças sociais. O futuro dirá se esta nova corrente será capaz de reverter as tendências de privatização da cidade e de submissão da gestão urbana aos interesses de corporações e grupos privados.
Enfim, o risorgimento dos movimentos de massa no Brasil é, sobretudo, um levante pelo “direito à cidade”. Pelo direito de participar e decidir na elaboração, discussão e implementação das políticas urbanas. Pelo direito a construir e viver em cidades feitas por e para o interesse público e não pelos interesses privados.
Finalizamos com David Harvey e sua conclusão do artigo “O direito à cidade” (2008):
“Dar um passo adiante para unificar estas lutas supõe adotar o direito à cidade como slogan prático e ideal político, porque o mesmo coloca a questão de quem domina a conexão necessária entre urbanização e produção e utilização do excedente. A democratização deste direito e a construção de um amplo movimento social para torná-lo realidade são imprescindíveis se os despossuídos vierem a recuperar o controle sobre a cidade que durante tanto tempo estiveram privados e desejam instituir novos modelos de urbanização (…) a revolução tem que ser urbana, no mais amplo sentido do termo, ou não será”.
Nenhum comentário:
Postar um comentário