Releia entrevista em que ensaísta, que completa 95 anos, fala sobre seu papel na transformação da crítica brasileira
Manuel Da Costa Pinto
Manuel Da Costa Pinto
“Sempre tive mais intuição do que método”, diz Antonio Candido nesta entrevista concedida à CULT após dois encontros em que o autor de Formação da Literatura Brasileira fez questão de discutir as perguntas às quais responderia por escrito. Normalmente avesso a entrevistas, Antonio Candido pediu que as perguntas girassem em torno de Textos de Intervenção e Bibliografia de Antonio Candido, deslocando o eixo de seu depoimento para o trabalho de Vinicius Dantas, organizador destes dois volumes publicados pela Editora 34. Mas a modéstia com que Antonio Candido encara sua obra e a reticência em relação à exposição pública não têm importância apenas para compor o retrato jornalístico de uma das personalidades mais marcantes de nossa vida intelectual. Na verdade, essa atitude de subordinação da crítica (“um gênero auxiliar, sem a importância dos gêneros criativos”) a seu objeto de estudo é um dos traços de um ensaísta que sempre cultivou a “paixão do concreto” – expressão que ele utiliza para descrever um tipo de leitura na qual as categorias analíticas brotam da obra e de seu contexto, e não o contrário. Ou seja, embora tenha participado direta ou indiretamente na formação de uma geração de críticos que inclui nomes como os de Roberto Schwarz, João Alexandre Barbosa e Davi Arrigucci Jr., Antonio Candido não partilha o ponto de vista de quem considera a crítica literária um gênero autônomo. O que, obviamente, não nos impede de ler como alta literatura os ensaios incluídos em Brigada Ligeira , Tese e Antítese e Ficção e Confissão.
CULT – Sua obra marca a transição, no Brasil, de uma crítica de caráter “impressionista” para uma geração de críticos universitários com fortes preocupações metodológicas. Ao mesmo tempo, o senhor assinou rodapés literários dentro da tradição de Álvaro Lins e Sérgio Milliet e, ao iniciar sua colaboração com o Diário de São Paulo, prestou uma homenagem a Plínio Barreto. Como o senhor avalia esses críticos de uma geração precedente à sua, como Álvaro Lins, Otto Maria Carpeaux e Alceu Amoroso Lima?
Antonio Candido – Quando a minha geração se formou, nos anos de 1930 e 1940, a crítica brasileira se fazia sobretudo no jornal e estava em boa fase. Havia os encarregados de seção com rubrica fixa, chamados “titulares”, e os que, mesmo fornecendo regularmente um artigo por semana, não o faziam no lugar chamado “rodapé” nem tinham rubrica. Entre os primeiros, Alceu Amoroso Lima, Plínio Barreto, Olívio Montenegro, Álvaro Lins. Creio que Sérgio Milliet se enquadrava no segundo tipo, como Mário de Andrade, Barreto Filho, Sérgio Buarque de Holanda. Sem falar num curioso franco-atirador, Agripino Grieco, o mais lido de todos. Superficial e brilhante, teve muita influência sobre os jovens, sobretudo pela irreverência com que demolia o academismo. Costumo dizer que os rapazes que o liam ficavam vacinados contra o eventual desejo de pertencer a uma academia de letras… Agripino e Gastão Cruls fundaram e dirigiram de 1931 a 1938 o Boletim de Ariel, publicação mensal dedicada apenas à crítica: resenhas, notas, artigos curtos, informações.
Qual a sua opinião sobre as críticas de Afrânio Coutinho – defensor de uma formação teórica de matiz acadêmico – aos rodapés literários?
Creio que ele não foi propriamente crítico, mas, como dizia, um critic’s critic,uma espécie de doutrinador por meio do jornal, interessado em divulgar certas tendências modernas da crítica, sobretudo a americana. A partir de dado momento insistiu na importância da crítica universitária, que estava se esboçando no Brasil, mas é curioso que uma das correntes que mais preconizou, o New Criticism, era formada por autores que valorizavam sobretudo a leitura de textos em profundidade e tentavam se afastar o mais possível da crítica universitária tradicional, baseada na erudição e na história. Mas o critério de Afrânio Coutinho era aberto, tanto assim que considerava obra máxima da nova crítica Mimesis, de Auerbach, cuja orientação é filológica e atenta ao contexto histórico. Essa abertura influiu favoravelmente a obra fundamental por ele organizada, A Literatura do Brasil, cujos colaboradores foram deixados livres para seguir os respectivos pontos de vista, que frequentemente não coincidiam com os do organizador. O seu ataque ao jornalismo crítico tem um lado paradoxal, pois ele próprio se realizou sobretudo na imprensa periódica.
Creio que ele não foi propriamente crítico, mas, como dizia, um critic’s critic,
Quais eram as suas preferências metodológicas e teóricas na época em que assinava os textos publicados na revista Clima, na Folha da Manhã e no Diário de São Paulo?
Para ser franco, sempre tive mais intuição do que método. No tempo a que alude, eu me interessava pelo vínculo da produção literária com a vida social, procurando determinar a sua função. Em parte, porque sou formado em ciências sociais; em parte, porque estava começando a militar em grupos de esquerda e tencionava politizar o meu trabalho crítico. A reflexão sobre as limitações de Sílvio Romero, que fiz numa tese de 1945, mais a influência da crítica americana e inglesa daquele tempo me levaram a retificar posições iniciais e tentar uma abordagem mais atenta à realidade própria dos textos. Sem falar que quando temos que escrever um artigo por semana sobre obras de vários tipos, elas acabam impondo a sua realidade e nós vamos deixando alguns pressupostos de lado para nos ajustarmos à natureza de cada uma. O crítico muito estrito em matéria de teoria e método acaba tendendo a tratar apenas as obras que se enquadram nos seus pressupostos.
Quais eram os seus critérios de orientação na Universidade? Como atuava em relação aos seus orientandos?
É preciso esclarecer que até os quarenta anos fui na Universidade assistente de sociologia. Quando me tornei professor de literatura em 1958, na Faculdade de Assis, e a partir de 1961 em São Paulo, nos cursos procurei sobretudo contrapor o trabalho com os textos à tendência histórica e biográfica tradicional, ou ao exagero de teoria que estava começando. Além disso, iniciei o estudo dos autores modernistas e seus sucessores, que até então não eram tema de ensino superior. Neste sentido, usei em aulas e seminários textos de Mário de Andrade, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Murilo Mendes, João Cabral, além de sugerir Mário de Andrade e Oswald de Andrade como assuntos de dissertações e teses. Com relação aos orientandos, a minha tendência era dar toda assistência aos que a solicitavam e precisavam dela, deixando liberdade completa aos que não queriam e nem precisavam. Este último caso ocorreu sobretudo nos doutorados pelo regime antigo, bastante informal, onde a elaboração da tese era praticamente tudo e não havia a obrigação de seguir cursos. Nesse regime tive candidatos já maduros intelectualmente, inclusive alguns de renome, aos quais, é claro, deixava liberdade total.
O senhor acredita que a crítica literária seja um gênero autônomo, comparável aos demais gêneros literários?
Sempre considerei a crítica um gênero auxiliar, sem a importância dos gêneros criativos. Tive vocação crítica precoce e por sugestão de minha mãe adquiri desde os quinze anos este hábito de comentar a leitura em cadernos. Por isso, aos vinte e três pude começar a escrever na revista Climasem nenhuma experiência anterior. Desde cedo gostei de ler os críticos brasileiros e franceses, nos jornais, nas revistas, nos livros de meus pais. Digo isso para sublinhar a minha identificação profunda com a atividade que sempre exerci a partir dos vinte e três anos, mesmo quando profissionalmente fazia outra coisa na Universidade. Considero-me, portanto, um crítico nato, mas isso não me impede de considerar a crítica um gênero lateral e dependente.
Existe diferença – em termos de permanência – entre o ensaio de crítica literária e o ensaio de interpretação cultural (como praticado por Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda ou Caio Prado)?
Parece que os ensaios que o senhor chama “de interpretação cultural” duram mais porque têm mais alcance aos olhos do público, na medida em que se referem ao país, à sociedade, à formação histórica, geralmente de interesse mais geral do que a literatura. Seja como for, nunca houve no Brasil um livro de crítica ou de história literária da categoria dos que foram escritos pelos autores que citou.
Textos de Intervenção traz críticas sobre poesia que o senhor não incluiu em seus livros anteriores – em que predominam análises de obras em prosa. Por que havia essa predominância da prosa em sua obra pregressa?
Não se esqueça de que sempre escrevi muito sobre poesia e que tenho um livrinho didático, Na Sala de Aula, no qual só há análises de poemas.
A crítica “militante”, feita no dia a dia dos jornais, no momento da publicação de obras e autores ainda desconhecidos, é talvez a forma mais arriscada de crítica, pois equivale a uma aposta na continuidade de um trabalho ainda em gestação. Quais são os autores que confirmaram sua avaliação inicial? E, inversamente, houve casos de autores em que o senhor enxergava uma promessa que não se confirmou?
O senhor tem razão quanto ao risco. Não é fácil escrever todas as semanas sobre livros do dia, feitos muitas vezes por autores desconhecidos, a respeito dos quais não se tem a menor referência. Por isso digo que um crítico como Álvaro Lins, que acertava sempre e produzia artigos bem escritos, de grande densidade e destemor, enfrentava dificuldades maiores do que, por exemplo, Augusto Meyer, que escrevia não sobre o livro da semana, de autor frequentemente desconhecido, mas sobre Camões, Cervantes, Machado de Assis, Dostoiévski, Pirandello, Rimbaud. Sempre de maneira impecável, é certo, mas sem correr o risco de avaliar o que ainda não fora consagrado. O jornalismo crítico é uma grande escola e, de certo modo, um teste importante, requerendo intuição certeira, rapidez de apreensão, capacidade de decidir e clareza de escrita. O jornalismo crítico de tipo francês foi a nossa grande escola, a de José Veríssimo, Alceu Amoroso Lima, Sérgio Milliet, Plínio Barreto, Álvaro Lins etc. Não pretendo me equiparar a eles, mas reconheço em mim um pouco dos requisitos mencionados, que me permitiram, por exemplo, reconhecer imediatamente o valor de três estreantes desconhecidos: João Cabral, Clarice Lispector, Guimarães Rosa. Cometi erros paralelos, dando importância a autores que não a tinham, supervalorizando livros fracos de autores famosos; mas não me lembro de nenhum erro calamitoso, isto é, considerar de primeira plana quem não era ou desqualificar alguém de alto nível. Mas talvez a memória esteja manobrando a meu favor…
O senhor acredita que o impacto das obras literárias altera os princípios metodológicos da crítica? Obras como as de Guimarães Rosa e Clarice Lispector estimularam a criação de novos conceitos da teoria literária?
Creio que sim, embora não necessariamente. Eu próprio tive a oportunidade de estudar como o poema cavaleiresco do Renascimento italiano suscitou o primeiro esboço de teoria do romance em Giraldi Cinthio. A ficção de Stendhal e a de Balzac influíram na formação dos pontos de vista críticos de Taine, orientados pelo determinismo. A obra de Henry James foi decisiva para certo tipo de teoria do romance, que privilegiava a perfeição formal, encarnada no que alguns denominaram “o romance bem feito” (the well made novel). Haja vista o livro de Percy Lubbock, The Craft of Fiction, que tanta influência teve. As obras brasileiras que o senhor citou levaram muitos críticos a focalizar problemas de criação linguística.
Dando continuidade à pergunta anterior: sua obra foi modificada, em termos conceituais, pelos caminhos tomados pela literatura brasileira desde o Modernismo?
É difícil dizer, porque o modernismo dos anos de 1920 teve influência muito ampla e profunda na literatura e mesmo na cultura brasileira, sobretudo como abertura para a liberdade de escrever e de pensar. Mas creio que influiu pouco no teor do meu trabalho crítico, em minha maneira de conceber a análise das obras, porque, em matéria de estudos literários, a análise (parece que hoje fora de moda) me interessa mais do que tudo. Ora, o espírito analítico depende de uma inclinação natural e do convívio com certos textos, além das oportunidades de receber influências diretas ou indiretas. Em tudo isso, no meu caso, o modernismo pesou pouco, apesar de ter admirado sempre muito os modernistas, com alguns dos quais convivi. O que formou a minha mentalidade, e portanto o meu espírito crítico, foram, em primeiro lugar, o ambiente de minha família, marcado por pai e mãe muito cultos e por uma ótima biblioteca. A seguir, a leitura voraz e caudalosa desde os oito ou nove anos, com predomínio dos autores franceses. Mais tarde, a Faculdade de Filosofia da USP, com seus professores estrangeiros, que nos marcaram profundamente, e com meus companheiros de geração, o chamado “grupo de Clima”. Com isso vejo que não respondi à sua pergunta, mas disse algo que explica minha formação.
O senhor acredita que a publicação de Textos de Intervenção altera o entendimento do conjunto de sua obra?
Antes de mais nada, acho que não tenho “uma obra”, mas escritos de vário tipo, que foram se articulando meio ao sabor das circunstâncias. No entanto, Vinicius Dantas fez neste livro um trabalho de análise esclarecedora, que foi para mim cheia de surpresas e talvez para outros modifique o que sabem e pensam a respeito do que escrevi. O crítico procura frequentemente descobrir a razão profunda dos textos, razão cuja natureza pode escapar a quem os produziu. Para mim foi uma experiência frequentemente reveladora ver como ele fez isso em relação ao meu trabalho, localizando e definindo os seus pressupostos. É certo que o fez com demasiada generosidade, mas também muita argúcia, revelando-se um crítico penetrante, servido por uma escrita de primeira ordem. E como selecionou textos de pouca circulação, ligados a definições críticas e ideológicas, é provável que venha a modificar a impressão de muita gente sobre a minha atividade intelectual. E quem sabe esta obra em dois volumes esteja criando um gênero novo, ao mostrar que é possível transformar a bibliografia numa coisa atraente, graças à combinação com a iconografia e os textos. Sou profundamente grato a Vinicius Dantas por ter imaginado e realizado esse trabalho ao longo de tantos anos.
Manuel da Costa Pinto é jornalista e crítico literário
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