sexta-feira, 1 de janeiro de 2016

PNAD 2014 – PARA ENTENDER O BRASIL DE HOJE -1 - breves análises texto de André Calixtre

PNAD 2014 – breves análises
texto de André Calixtre
fonte Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada
A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) de 2014 mostrou que a
realidade brasileira permanece em franco processo de mudança social, mesmo observando já
turbulências na conjuntura econômica em 2014, mostradas pelo aumento da taxa de
desemprego logo em setembro daquele ano.

O padrão de desenvolvimento dos últimos anos – permitido pela combinação do
avanço da política social (tantos as universais quanto as focalizadas) e ampliação com
melhorias estruturais do mercado de trabalho (redução do desemprego com formalização e
ganhos reais de salário puxados pela política de valorização do salário mínimo) – não cessa
em 2014, tampouco retrocede. Sua base estruturante permanece, com o crescimento real da
renda do trabalho e a diminuição de suas desigualdades, o aumento da escolaridade e das
condições gerais de vida do brasileiro e a diminuição das brechas que separam negros de
brancos, mulheres de homens, trabalhadores rurais de urbanos. A questão está sempre na
intensidade das mudanças, que poderia ter sido maior, especialmente para o conjunto de
melhorias ligadas à desigualdade, entendida em seus múltiplos aspectos. Não obstante, o
resultado de 2014 surpreende positivamente. Ao final do ciclo 2011-2014, não se observa a
desconstrução do legado do ciclo 2003-2010, e sim um aprofundamento das mudanças

Esta Nota Técnica representa o esforço de todas as coordenações da Diretoria de
Estudos e Políticas Sociais (DISOC) do Ipea em interpretar os resultados recentes da PNAD
em 2014, apontando os avanços e os desafios do desenvolvimento social brasileiro em
perspectiva de uma década (2004-2014). A elaboração dos dados contou com a colaboração
do Núcleo de Gestão de Informações Sociais (NINSOC) da DISOC, coordenado por Fábio
Vaz, assim como das equipes próprias de cada coordenação.

O primeiro tema analisado, assinado por Rafael Osorio, mostra uma redução na taxa
de pobreza extrema no último ano, sob todas as linhas de corte usualmente utilizadas. Pela
linha de R$ 77,00, observou-se 2,48% da população em extrema pobreza, um índice 63%
menor que em 2004. Entre 2013 e 2014, a taxa de pobreza extrema caiu 29,8%, uma redução
importante cujas causas estão associadas, segundo o autor, à permanência do aumento da
renda e redução das desigualdades. Complementárias às causas enumeradas por Osorio,
podem-se observar o incremento dos valores médios despendidos no programa Bolsa
Família, a difusão de direitos como o Benefício de Prestação Continuada e o aumento da
cobertura previdenciária, e a melhoria metodológica de captação das rendas extremamente
baixas, promovida pelo IBGE nessa edição da pesquisa. Retomando o argumento proposto,
essa trajetória de redução da pobreza extrema foi combinada com a redução da desigualdade
da renda captada pela PNAD, expressa no índice de Gini de 0,515 (redução de 9,7% desde
2004) e com um persistente aumento da renda domiciliar per capita real de R$ 549,83 em 2004
para R$ 861,23 em 2014.

Não foi somente a renda que avançou nos últimos anos, mas a estrutura familiar
também está em franco processo de transformação. Ana Amélia Camarano e Daniele
Fernandes analisam que os arranjos familiares estão mais diversificados. Os domicílios
tradicionais ocupados por um casal e filhos diminuíram 10 p.p. em dez anos, de 54,8% para
44,8%, cedendo espaço para os domicílios habitados por homens e mulheres sozinhos, casais
sem filhos e lares chefiados exclusivamente pela mulher (monoparentais). Ademais, os novos
arranjos familiares têm feito crescer a proporção de domicílios cujos parceiros não têm
perspectiva de criar filhos, de 12,4% em 2004 para 20,2% em 2014. A pobreza também se
reduziu independentemente do tipo de arranjo familiar, principalmente nos domicílios
ocupados por mães com filhos, casal com filhos e pai com filhos.

Parte fundamental das mudanças sociais, os avanços na educação brasileira seguem
uma trajetória ininterrupta, ainda que a velocidade desse avanço esteja abaixo do necessário
para o Brasil cumprir suas metas estabelecidas pelo Plano Nacional de Educação (PNE).
Paulo Corbucci, Herton Araújo, Ana Codes e Camilo Bassi constatam que o Brasil atingiu
em 2014 a média nacional de 10 anos de estudos da população entre 18 a 29 anos, em 2004
essa média era de 8,4 anos. Em termos regionais, sociais e raciais, no entanto, as disparidades
permanecem: em 2014, o Nordeste tinha 9,2 anos de estudo, e o Norte 9,3; os 25% mais
pobres do Brasil possuem apenas 8,2 anos de estudo em média, o mesmo nível da população
rural brasileira; e a média das mulheres (9,8) e homens (9,0) negros continua abaixo da média,
ainda que estas diferenças tenham-se reduzido significativamente nos últimos dez anos. Isso
implica um grande desafio de políticas públicas, pois a Meta 8 do PNE estabelece para 2024
12 anos de estudo “para as populações do campo, da região de menor escolaridade no País
e dos 25% mais pobres, e igualar a escolaridade média entre negros e não negros”.

Outra questão abordada pelos autores na área de educação é o combate ao
analfabetismo. Observa-se uma lentidão estrutural na taxa de alfabetização da população
brasileira de 15 anos ou mais, que subiu de 88,6% em 2004 para 91,7% em 2014. Essa lenta
progressão dá-se fundamentalmente pela existência de um elevado contingente de adultos e
idosos analfabetos. Os programas de alfabetização voltados para esse público não têm
conseguido atingi-lo. Esse dado estrutural dificulta o alcance das metas do PNE relacionadas
ao tema. Dois pontos, no entanto, são observados como bastante positivos: a redução das
desigualdades inter-regionais do analfabetismo e a quase erradicação das desigualdades raciais
do analfabetismo na população de 15 a 17 anos, tanto entre mulheres brancas e negras quanto
entre homens brancos e negros.

No tema do mercado de trabalho, a abordagem de Lauro Ramos sobre PNAD 2014
revela as maiores preocupações conjunturais sobre o principal motor de expansão dos
direitos sociais e da redução das desigualdades. De um lado, os rendimentos do trabalho
crescem continuamente desde 2004, a informalidade (39,93% em 2014) e o desemprego
(6,9% em 2014) estão muito abaixo do observado no início da série. O problema é o
comportamento dessas variáveis entre 2013 e 2014, prenunciando uma parte importante do
cenário crítico de 2015. Mais o desemprego e menos a informalidade reagiram negativamente
no período, enquanto o crescimento do rendimento médio real, que fora superior a 7% em
2006 e próximo de 6% ainda em 2012, ficou abaixo de 1% em 2014 pela primeira vez no
intervalo considerado. Isso mostra sinais de estresse no mercado de trabalho anteriores à
crise que se iniciaria ao final de 2014 e por todo o ano corrente.

A estruturação do trabalho brasileiro trouxe uma importante conquista, que é a
expansão da cobertura previdenciária. Leonardo Rangel avalia este fenômeno sob a ótica da
expansão de direitos dos indivíduos contra as contingências que o afetariam no mundo do
trabalho (gravidez, doenças e acidentes) e como um sistema que permite ao indivíduo a sua
reprodução social na velhice. Considerando todas as categorias de beneficiários contributivos
e não contributivos, a cobertura previdenciária saltou de 63,4% em 2004 para 72,9% em 2014
em toda a população ocupada de 16 a 64 anos. O aumento dessa cobertura foi contínuo entre
2004 e 2013, e estável no último ano, e é explicado pela expansão do número de contribuintes
do Regime Geral da Previdência Social (RGPS). No RGPS, no entanto, permanecem grandes
desigualdades entre as posições na ocupação: os empregados e empregadores possuem quase
o dobro da cobertura previdenciária dos trabalhadores domésticos e por conta própria, ainda
que todas as ocupações tenham aumentado seus índices de cobertura no período.

Observando somente a população idosa (65 anos ou mais), a cobertura previdenciária
contributiva e não contributiva tem mantido patamares razoavelmente elevados – 89,9% em
2004 para 91,3% em 2014 – e a população de beneficiários saltou de 11 milhões no primeiro
ano para 17,2 milhões no último.

Ainda na questão do mercado de trabalho, a PNAD 2014 aponta, segundo Natalia
Fontoura, Antonio Teixeira Lima Jr. e Carolina Cherfem, grandes desigualdades de gênero e
raça entre os brasileiros, cujas mudanças são mais perceptíveis no longo prazo. Em 2014, o
Brasil possuía 2,4 milhões de mulheres negras desocupadas contra 1,2 milhão de homens
brancos desempregados e, apesar de as distâncias terem diminuído desde 2004, os homens
brancos ainda percebem rendimentos 60% superiores aos das mulheres negras. Ademais, o
aumento do desemprego impactou mais profundamente o grupo de mulheres e homens
negros que o de brancos: o primeiro grupo representou 60,3% de todo o aumento de
desemprego gerado entre 2013 e 2014. Este grupo é mais precarizado e vulnerável ao
desemprego. Sua informalidade atual é superior à taxa da informalidade de brancos de dez
atrás.

Dentre as ocupações femininas, o trabalho doméstico é acompanhado de perto pelo
Ipea, por envolver a parcela mais vulnerável destas mulheres trabalhadoras, especialmente
mulheres negras, cuja taxa de incidência no emprego doméstico supera a de todos os demais
grupos raciais e de gênero (17,6% das mulheres negras ocupadas, de 16 anos ou mais, são
empregadas domésticas). O emprego doméstico é, também, um dos temas mais transversais
na questão social brasileira, cuja compreensão demanda análise das perspectivas de gênero,
raça e classe, simultaneamente. Devem ser reconhecidos os avanços legislativos recentes com
a aprovação da PEC das Domésticas (EC 72/13) e da Lei Complementar 150/15, cujos
efeitos ainda estão para ser observados. A estrutura de proteção social do emprego doméstico
tem melhorado sistematicamente ao longo dos últimos dez anos, no entanto, permanece mais
precária do que a média dos outros empregos. Entre as mulheres negras, o grau de
informalidade caiu de 75,9% em 2004 para 66,5% em 2014. Em média, hoje somente quatro
em cada 10 trabalhadoras domésticas estavam protegidas no ano corrente, cujos rendimentos
médios (R$ 683,00) são inferiores ao salário mínimo. Cresceu a proporção de trabalhadoras
que prestam serviços em mais de um domicílio, de 21,4% há dez anos para 31,1% atualmente,
mostrando um aumento da composição das trabalhadoras diaristas ante as de emprego fixo.

Há grande expectativa na melhoria deste quadro nos próximos anos, em razão dos efeitos da
mudança no marco regulatório da categoria e do próprio envelhecimento populacional das
trabalhadoras domésticas, fruto da baixa atratividade do setor.

Outro bloco de análise atento às questões do mercado de trabalho trata da evolução
do emprego agrícola nos últimos dez anos. Alexandre Arbex e Marcelo Galiza reconhecem
que todas as categorias do emprego agrícola obtiveram aumentos de renda real bastante
significativos nos últimos dez anos, de 40,9% para a base mais precarizada, que são os
trabalhadores temporários, a 67,8% para o topo da classe dos trabalhadores permanentes,
com ganhos importantes na redução da informalidade do trabalho, de 68,1% em 2005 para
56,8% em 2014. A velocidade destas mudanças, no entanto, não foi suficiente para reduzir
as desigualdades estruturais que residem no campo, tanto em relação às diferenças internas
entre trabalhadores temporários e permanentes, quanto na histórica desigualdade entre
campo e cidade. Internamente, a formalização e estruturação do trabalho estiveram mais
ligadas à agricultura patronal que à agricultura familiar, aquelas conectadas ao fenômeno do
avanço do agronegócio e da mecanização do campo. O desaquecimento do mercado
internacional de commodities desde 2012 recolocou desafios ao equacionamento dos dois
caminhos para o desenvolvimento do campo, um centrado no agronegócio voltado à
exportação e o outro na agricultura familiar para o consumo de alimentos do mercado

Ainda sobre a questão agrária, os mesmos autores propuseram uma breve análise
sobre a questão do trabalho infantil no campo. Após reduções sistemáticas na população de
crianças e adolescentes (5 a 14 anos) ocupados no mercado de trabalho de quase 2 milhões
em 2004 para 839,6 mil em 2013, a PNAD de 2014 apontou um pequeno, mas inédito,
aumento nesta população para 897 mil. Deste contingente, 53,3% residem nas áreas rurais,
sendo que a população total de pessoas nessa faixa etária que vivem no campo é de apenas
18%. Apesar dessa desproporção, o trabalho infantil no campo está também fortemente
associado às atividades produtivas da própria unidade familiar, cuja especificidade deve ser
analisada considerando a importância da relação com a terra, o território e a comunidade,
sem que, no entanto, esta especificidade afete o pleno desenvolvimento das crianças e

Nessa perspectiva, é importante notar que o trabalho infantil está majoritariamente
distribuído na faixa de 10 a 14 anos (89,3% do total). No grupo rural de pessoas nessa idade,
43,6% foram classificados como trabalhador não-remunerado na unidade familiar, 37% na
produção para autoconsumo e 8,7% como conta própria. São muito menos relevantes o
contingente de empregados agrícolas em idade inferior a 14 anos (21,5 mil em 2014) e
exercendo atividades não-agrícolas mesmo residindo no campo (52,6 mil). Apesar do
pequeno aumento no trabalho infantil rural de 2013 para 2014, o saldo dos últimos dez anos
é muito positivo: a queda do trabalho infantil no campo (57%) foi muito superior ao
decréscimo populacional da mesma faixa etária nos mesmos dez anos (16%). Na população
atual de trabalho infantil, nota-se que não há impacto sobre a frequência escolar, mas
preocupa os alunos que trabalham e estudam, pois eles tendem a estar mais defasados em
relação aos alunos que somente estudam.

Em suma, podem-se observar grandes transformações sociais no Brasil nos últimos
dez anos, posto que a velocidade destas poderia sempre ser maior, especialmente nos grandes
temas da desigualdade. Naquilo que a PNAD propõe-se a captar, observa-se que as
mudanças atingiram questões estruturais da sociedade, a forma como as famílias se formam,
o acesso à educação, à proteção social, à cobertura previdenciária e ao mundo do trabalho
urbano e rural. Os dados para o ano de 2015 ainda estão por ser divulgados. Em meados de
2016 será possível uma análise mais precisa da capacidade da estrutura social brasileira em
suportar crises. Por ora, pode-se afirmar que essas conquistas resistiram às mudanças
conjunturais iniciadas em 2014, mostrando que o avanço social possui um tempo próprio de
consolidação e que se pode atravessar crises econômicas com uma relativa (mas limitada)
tranquilidade permitida pela estruturação de um Estado de Bem-Estar Social, como tem sido
perseguida pela sociedade brasileira desde a Constituição Federal de 1988.

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