quarta-feira, 5 de setembro de 2012

“Integração não é um luxo — mas necessidade da América Latina”


  3 DE SETEMBRO DE 2012

Economista boliviano afirma que grandes projetos de infraestrutura são essenciais para superar dependência de produtos primários, mas defende debate com comunidades antes de definição dos projetos
Por Mario Osava, da IPS
Basear a economia em matérias-primas “não é sustentável no longo prazo”, alerta o economista boliviano Enrique García diante da tendência atual de vários países da América Latina de apostar na expansão da mineração em detrimento de um maior desenvolvimento industrial. O desenvolvimento regional necessita de uma “transformação produtiva”, com inclusão social, educação, inovação tecnológica e diversificação, além da total atenção às questões ambientais, destacou García, presidente-executivo da CAF, em entrevista à IPS. A infraestrutura de integração, cuja construção conta com crescente financiamento dessa instituição multilateral, que García dirige desde 1991, é fundamental para esse processo.
A CAF conserva as siglas de seu nome original, Corporação Andina de Fomento, mas identifica-se como Banco de Desenvolvimento da América Latina desde seu informe anual de 2010, quando já contava entre seus membros com 16 países da região mais Espanha e Portugal. Os setores de transporte, armazenamento e comunicações constituem o item mais financiado pela CAF, com US$ 5,325 bilhões em 2011. O segundo, com US$ 5,018 bilhões, compreende os setores de energia elétrica, gás e água, enquanto o da mineração ficou limitado a US$ 50 milhões.
IPS: Quais mudanças reflete o novo nome da instituição?
Enrique García: A CAF nasceu subrregional, limitada à Comunidade Andina de Nações (hoje formada por Bolívia, Colômbia, Equador e Peru), mas nos últimos 20 anos ampliou sua dimensão, alcançando 18 países-membros e se convertendo no banco de desenvolvimento da América Latina para a América Latina. É hoje a principal fonte de financiamento multilateral da região, com uma carteira superior a US$ 10 bilhões ao ano. Sua visão é de uma agenda integral de desenvolvimento, atendendo países de diferentes modelos e relações Estado-setor privado, buscando um crescimento elevado, sustentado e de boa qualidade. Isto é, eficiente economicamente e inclusivo, cujos resultados cheguem às pessoas. Além disso, com respeito pela diversidade cultural e o ambiente.
IPS: Por que a prioridade dada à infraestrutura de integração?
EG: Nosso êxito está vinculado com a infraestrutura, que é um fator fundamental para uma economia mais produtiva e para a inclusão social. Foi fundamental em atrair para a CAF países não andinos, como o Brasil. Quando Fernando Henrique Cardoso presidia o Brasil (1995-2003), manifestou interesse em que a CAF financiasse projetos de integração, como a interligação viária entre seu país e a Venezuela e um gasoduto a partir da Bolívia. Respondi que a CAF não poderia, mas deveria fazê-lo. Recentemente, e após uma modificação em seus estatutos, permitiu-se à entidade incorporar como membros plenos Brasil, Argentina, Panamá, Paraguai e Uruguai. Assim, nos últimos anos foi possível financiar aproximadamente 60 projetos de infraestrutura para a integração regional, como estradas, portos, gasodutos e interligações elétricas.
IPS: Mas muitos desses projetos enfrentam resistências de indígenas e de outras populações afetadas, além de travas ambientais e judiciais que provocam atrasos.
EG: Os grandes projetos devem ser manejados com cuidado, com estudos integrais e análises técnicas prévias, já na fase de pré-viabilidade, pois não se pode esperar que os engenheiros definam tecnologias para depois fazer os estudos de impacto ambiental e social. Dessa forma apenas mitigam impactos, não os resolvem. A CAF tem fundos não reembolsáveis para complexos estudos preliminares. Hoje é importante preparar tudo com antecedência. Atrasos acontecem em geral, mas em muitos de nossos países a decisão ainda é apenas técnica, deixada em mãos de engenheiros e dos ministérios, sem levar em conta os elementos sociais e ambientais. Em obras como estradas e complexos hidrelétricos, por exemplo, uma opção mais barata pode se mostrar mais cara, pelo desmatamento e outros impactos, que a alternativa mais cara pode resolver melhor. A comunicação com as comunidades, informando sobre custos e benefícios de uma realidade que não será como antes, também é necessária. Há grupos territoriais que, devido à má informação, reagem negativamente.
IPS: A mineração quase não aparece na carteira de empréstimos da CAF, pois a ela, no ano passado, foram destinados apenas 0,33% do total, mas é uma atividade em forte expansão na América do Sul. Como vê esse crescimento do setor que gera tantos conflitos e exige uma infraestrutura própria?
EG: A América Latina é rica em recursos naturais e precisa estudar como explorá-los com sustentabilidade. Entretanto, também precisa promover uma transformação produtiva, não depender tanto de matérias-primas, que não asseguram uma economia sustentável no longo prazo. A alta dos preços das commodities (matérias-primas) gerou uma bonança econômica na região, e também um retrocesso na transformação produtiva. A agenda de longo prazo exige que se dê prioridade à educação e à inovação e melhor conectividade para diversificar sua produção, o maior desafio. A Finlândia é um exemplo de país que a partir de uma base de recursos naturais desenvolveu tecnologias avançadas, com empresas como a Nokia. Às vezes se exagera nas críticas, por isso é preciso um grande esforço para mostrar os benefícios da atividade mineradora com princípios ambientais e sociais, e transparência nas decisões.
IPS: E a integração, que papel tem nisso tudo?
EG: Se a América Latina quer ser um ator global importante, sua integração é uma necessidade, não um luxo. Nem mesmo o Brasil, com a força que tem, pode pesar internacionalmente sem fortalecer um papel conjunto na região. Além de uma saída para o Oceano Pacífico, para a economia brasileira é fundamental integrar os mercados regionais para uma transformação produtiva. É lamentável, por exemplo, que o comércio intrarregional represente apenas 15% do total na América do Sul, enquanto supera os 60% na União Europeia.
IPS: Mas as reações que acusam o Brasil de “imperialista”, pela expansão de suas empresas transnacionais em países vizinhos, não dificulta essa integração?
EG: As críticas não são justas. Os países latino-americanos necessitam muitos investimentos e esse mercado abre oportunidades para grandes empresas de nível internacional. É parte do processo. Oxalá surjam outras empresas com essa capacidade.
IPS: Como explicar a escassa participação das hidrovias nessa integração física?
EG: Sou crente do sistema dos rios. A CAF publicou, há 14 anos, o livro Rios que nos Unem: Integração Fluvial Sul-Americana, mostrando como o centro do continente pode se integrar pelos rios. Proximamente publicará Rios de Integração: o Caminho Fluvial da América Latina. Não demos o peso merecido a esse recurso de enorme capacidade. É preciso revisá-lo, pensar os rios em sua dimensão real, olhar o exemplo da Europa no uso intenso dessa via de transporte. Envolverde/IPS
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