quinta-feira, 18 de julho de 2013

A indecisão brasileira


A indecisão brasileira

Coexistem em Brasília duas tendências: uma moderadamente latino-americanista e que prosperou sob o governo de Lula; e outra que acha que o futuro do Brasil passa por uma íntima associação com os EUA. Esta corrente ainda não chega a ser hegemônica no Palácio do Planalto, mas sem dúvida hoje encontra ouvidos muito mais receptivos que antes. Por Atilio A. Boron

Henry Kissinger, cuja condição de criminoso de guerra se une a de ser um fino analista da cena internacional, disse no fim dos anos sessenta que “para onde se incline o Brasil se inclinará a América latina”. Isso não é bem assim hoje porque a maré bolivariana mudou para bem o mapa sociopolítico regional; mas ainda assim a gravitação do Brasil no plano hemisférico continua sendo muito importante. Se seu governo impulsionasse com força o Mercosul e a Unasul ou a Celac, outra teria sido a história dessas iniciativas. Mas Washington vem trabalhando há tempo para desestimular esse protagonismo. Aproveitou-se da ingênua credulidade ou o afinado colonialismo mental do Itamaraty prometendo-lhe demagogicamente que garantiria para o Brasil uma cadeira permanente no Conselho de Segurança da ONU, enquanto a Índia e o Paquistão (duas potências atômicas) ou a Indonésia (a maior nação muçulmana do mundo) e o Egito, a Nigéria, o Japão e a Alemanha, entre outros, ficariam fora.

Mas não se trata só de ingenuidade, pois a opção de associar-se intimamente a Washington seduz muitos em Brasília. Poucos dias depois de assumir seu cargo como chanceler, Antonio Patriota concedeu uma extensa entrevista à revista Veja. A primeira pregunta foi esta: “Em todos seus anos como diplomata profissional, que imagem formou dos Estados Unidos?”. A resposta foi assustadora: “É difícil falar de maneira objetiva porque tenho um envolvimento emocional (sic!) com Estados Unidos através da minha família, de minha mulher e de sua família. Existem aspectos da sociedade americana que admiro muito”.

O razoável teria sido que lhe pedissem a imediata renúncia por “incompatibilidade emocional” com a defesa do interesse nacional brasileiro, coisa que não aconteceu. Por quê? Porque é óbvio que coexistem em Brasília duas tendências: uma moderadamente latino-americanista e que prosperou sob o governo de Lula; e outra que acha que o esplendor futuro do Brasil passa por uma íntima associação com os Estados Unidos, esquecendo-se de seus revoltosos vizinhos. Essa corrente ainda não chega a ser hegemônica no interior do palácio do Planalto, mas sem dúvida que hoje em dia encontra ouvidos muito mais receptivos que antes. E essa mudança na relação de forças de ambas tendências saiu à luz com a muito demorada reação da presidenta Dilma Rousseff diante do sequestro do qual Evo Morales foi vítima: se os presidentes de Cuba, Equador, Venezuela e Argentina (além do secretário geral da Unasul Alí Rodríguez) demoraram apenas uns poucos minutos depois de conhecida a notícia para expressar seu repúdio ao ocorrido e sua solidariedade com o presidente boliviano, a brasileira necessitou de quase quinze horas para fazê-lo. Depois, inclusive, das duras declarações do próprio secretário geral da OEA, cuja reprovação foi conhecida quase em coincidência com a dos primeiros. Conflitos e disputas no interior do governo que fizeram que Dilma Rousseff não participasse do encontro que teve lugar em Cochabamba, localizada a escassas duas horas e meia de voo de Brasília, debilitando o impacto global desta reunião presidencial.

Para uma América latina emancipada das algemas neocoloniais é decisivo contar com o Brasil. Mas isso não será possível, apenas a conta-gotas, enquanto não se resolva a favor da América latina a pugna entre aqueles dois projetos. Isso não só converte o Brasil em um ator vacilante em iniciativas como o Mercosul ou a Unasul, mas o conduz a uma perigosa paralisia em estratégicas questões de ordem doméstica.

Por exemplo, ao não poder resolver desde 2009 onde adquirir os 36 aviões caça que necessita para controlar seu imenso território e muito especialmente a grande bacia amazônica e sub-amazônica. Uma parte do alto comando se inclina por um reequipamento com aviões estadunidenses, enquanto outra propõe adquiri-los na Suécia, França ou Rússia. Nem sequer Lula pode resolver a discussão. Essa absurda paralisia se destravaria facilmente se a elite política se fizesse uma simples pergunta: quantas bases militares têm na região cada um dos países que nos oferecem seus aviões? Se o fizessem, a resposta seria a seguinte: a Rússia e a Suécia não têm nenhuma; a França tem uma base aeroespacial na Guiana francesa com presença de pessoal militar estadunidense; e os Estados Unidos têm, por sua vez, 76 bases militares na região, um punhado delas alugadas a – ou coadministradas com – terceiros países como o Reino Unido, a França e a Holanda.

Algum burocrata do Itamaraty ou algum militar treinado em West Point poderia aduzir que estão ali para vigiar a Venezuela. Mas a dura realidade é que enquanto a Venezuela é ameaçada por 13 bases militares norte-americanas instaladas em seus países limítrofes, o Brasil se encontra literalmente cercado por 23, que se convertem em 25 ao somar as duas bases britânicas de ultramar com que contam os Estados Unidos no Atlântico equatorial e meridional, nas ilhas Ascensión e Malvinas respectivamente. De pura casualidade, as grandes reservas submarinas de petróleo do Brasil se encontram aproximadamente na metade de caminho entre ambas instalações militares.

Frente essa grosseira evidência, como é possível que ainda se esteja em dúvida de quem não comprar os aviões que o Brasil necessita? A única hipótese realista de conflito do Brasil é com os Estados Unidos. Na Argentina há alguns que prognosticam que o enfrentamento será com a China. Claro que há diferenças: enquanto esse país invade a região com uma infinidade de supermercados, Washington o faz com toda a força de seu músculo militar, rodeando principalmente o Brasil. E, se fizer falta, reativa também a Quarta Frota (em outras dessas grandes “casualidades” da história!) justamente poucas semanas depois de que o presidente Lula anunciasse o descobrimento da grande reservatório de petróleo no litoral paulista. Ou é que os funcionários a cargo desses temas no Brasil podem não saber que nem bem o presidente Hugo Chávez começou a ter as primeiras controvérsias com Washington, este lhe pôs um cadeado ao envio de peças de reposição e renovados sistemas de aeronavegação e combate para a frota dos F-16 que a Venezuela tinha, que ficou inutilizada? Não faz falta demasiada inteligência para imaginar o que poderia acontecer em caso de que surgisse um sério conflito entre o Brasil e os Estados Unidos pela disputa do acesso a, por exemplo, alguns minerais estratégicos que se encontram na Amazônia; ou ao petróleo do “pré-sal”; ou o cenário do “caso pior”, se Brasília não acompanhasse Washington em uma aventura militar encaminhada a derrubar algum presidente incômodo da região replicando o modelo utilizado na Líbia. Nesse caso, a represália diante do aliado que deserta seria a mesma que se aplicou a Chávez. Tomara que essas duras realidades se discutam publicamente no Brasil e que se ponha fim a suas crônicas vacilações. A reunião do Mercosul em Montevideo poderia ser um bom começo.

* Diretor do PLED, Centro Cultural da Cooperação Floreal Gorini.

Tradução: Liborio Júnior

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