sábado, 27 de julho de 2013

A prece que o santo não rezou


Falsamente atribuída a São Francisco de Assis, "Oração da Paz" é do século 20

Gabriel Perissé
Sabe-se hoje que a Oração de São Francisco, conhecida como a Oração da Paz, não é da autoria do santo que viveu no século 13, considerado o santo dos pobres. Não há vestígio de texto seu com este conteúdo no dialeto úmbrio do italiano, como é o caso do Cântico das Criaturas, e menção alguma à prece antes do século 20.
Vários estudiosos colocaram em dúvida a atribuição, a partir dos anos 1940. Nos 70, o monge trapista Willibrord van Dijk escreveu o artigo "Uma oração em busca de um autor". Mas só recentemente o historiador francês Christian Renoux reuniu evidências para revelar, no livro A Oração pela Paz atribuída a São Francisco de Assis: um Enigma a Desvendar (2001), a história da oração, ecumênica por excelência, cuja beleza motivou traduções em quase todos os idiomas.

FronteirasA oração veio à luz em Paris, em 1912, numa modesta publicação católica (La clochette, isto é: A sineta), editada pelo padre Esther Bouquerel, em Paris. Vinha sob o título: "Bela oração para se fazer durante a missa". Talvez tenha sido concebida pelo próprio padre, ou por um fiel inspirado que se manteve anônimo.

Repleta de antíteses, ficaria restrita a um círculo de devotos, mas chegou ao conhecimento do papa Bento XV. Em 1916, na Grande Guerra, o Pontífice julgou oportuno que a oração fosse traduzida para o italiano e divulgada no Observatório Romano (edição de 20 de janeiro). Uma semana depois, ela ressurgiu num dos jornais de maior circulação na França: o La Croix. 

Nos anos 20, um frei capuchinho distribuiu o texto com o título "Oração pela paz" no verso da imagem de São Francisco. Não dizia que pertencia ao santo, mas permitia a associação. Em 1927, o movimento protestante francês Os Cavaleiros do Príncipe da Paz, de promoção da harmonia entre os povos, difundiu a oração pela Europa, atribuindo-a ao santo.

Ultrapassando fronteiras, foi traduzida para o inglês pelo pacifista americano Kirby Page, no livro Vivendo Corajosamente (1936). Pagegarantia que seu autor era Francisco de Assis. A "Oração de São Francisco" propagou-se com a 2ª Guerra, e suas traduções se multiplicaram em outros idiomas europeus. A urgência pela paz deixava de lado a questão da autoria.

Mencionada e retraduzida, transformada em canções ou adaptada, é difícil saber com exatidão as fontes para cada versão da Oração da Paz. A análise a seguir traz breves observações, servindo-se do original (1912), do italiano do Observatório Romano (1916), do inglês do livro Os Doze Passos e as Doze Tradições, do Serviço Mundial dos Alcoólicos Anônimos (1952) e da versão de Manuel Bandeira (1945).

Gabriel Perissé é tradutor e pesquisador do NPC - Núcleo Pensamento e Criatividade.
Comentários:
1- A noção católica de "instrumento de Deus" tem a ver com a relação entre liberdade humana e ação divina. O ser humano atua como instrumento livre e obediente. O instrumento tem movimentos que se tornam extensão da mão de Deus, em sintonia com ela. Já a palavra channel da tradução inglesa indica uma realidade estática, através da qual Deus intervém, sem a necessidade da livre colaboração humana.
2- A tradução italiana inverteu a ordem desses dois versos. No original francês, a antítese erro-verdade vem antes da dúvida-fé. A tradução inglesa segue a ordem francesa, e Manuel Bandeira parece ter se guiado pela opção italiana.
3- Outra inversão. E novamente Bandeira acompanha a escolha da tradução italiana, em que, neste caso, a antítese trevas-luz vem depois da tristeza-alegria. No original francês, fala-se em "votre lumière", mas a tradução italiana elimina o pronome possessivo, e Bandeira também.
4- No texto francês de 1912, há uma referência ao autoesquecimento como caminho de encontro de si mesmo. A tradução italiana omitiu essa frase, e mais uma vez Bandeira está do lado desta versão, e não do original francês. A tradução inglesa recupera essa expressão da ascese cristã.
5A palavra "amen" no texto dos Alcoólicos Anônimos evidencia que se trata de oração. Curiosamente, a interjeição litúrgica não se encontra no original francês, ou em muitas outras traduções. A oração, sem o "amém" final, torna mais claro que ela é também um belo poema.


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