sábado, 27 de julho de 2013

EUA: a pós-racialidade é um mito


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Trayvon Martin, morto por caminhar em condomínio
Assassinato de rapaz negro e decisão eleitoral pró-brancos da Suprema Corte revelam: divisão racial acirrou-se após eleição de Obama
Por Mariana Assis
A eleição de Barack Obama à presidência dos Estados Unidos em 2008 foi interpretada por muitos como demonstrativo da entrada do país em uma nova era, a era da democracia pós-racial. O termo pós-racial, nesse contexto, pretende indicar que a vida social e política estadounidense tornou-se neutra em relação às divisões raciais que a caracterizavam. Mais que isso, as práticas de discriminação e hierarquização racial explícitas, marcadoras de grande parte da história do país, seriam hoje rejeitadas pela maioria da população. Ademais, a condução do primeiro afro-americano a um dos postos de maior poder na geopolítica mundial produziu, nas comunidades negras dentro e fora do país, sentimentos de alegria e orgulho que transcenderam divisões sócio-econômicas e ideológicas. Assim, aquele momento simbólico conduziu à crença de que os Estados Unidos teriam finalmente alcançado, no plano das relações raciais, o estágio pelo qual integrantes do movimento dos direitos civis haviam tão intensamente lutado.
Parece que foi esse o pano-de-fundo a nortear a Suprema Corte estadounidense quando decidiu, no dia 25 de junho, declarar nulas partes fundamentais da Lei do Direito ao Voto (Voting Rights Act), especificamente o mapa que determina quais estados devem receber autorização federal antes de alterar as suas legislações que regulam o exercício do direito ao voto¹. Em vigor desde agosto de 1965, período em que o país era governado por Lyndon Johnson, tal legislação é considerada o mais importante instrumento regulatório dos direitos civis na história dos Estados Unidos. Todavia, a Suprema Corte entendeu que essa proteção do direito fundamental ao voto não é mais necessária, pois o país se alterou substancialmente nas últimas cinco décadas. Em sua argumentação, John Roberts, presidente da Suprema Corte, argumentou que “as coisas mudaram no Sul”, acrescentando que “violações flagrantemente discriminatórias da legislação federal são raras”². O impacto dessa decisão é tão significativo que estudiosos questionaram se o que estamos assistindo é o fim da era dos direitos civis, inaugurada há quase 50 anos por aquela que talvez seja a mais importante decisão judicial na história estadounidense: Brown x Board of Education³. A reação mais do que justificada e necessária de setores e indivíduos comprometidos com os direitos civis foi de crítica severa e repúdio à ideia de que os direitos fundamentais da população negra não mais necessitam da proteção institucional conferida pelo aparato estatal.
Menos de um mês após a publicação da decisão da Suprema Corte, uma outra decisão judicial, desta vez em Sanford, no estado da Flórida, serviu como demonstração cabal de que tanto a Suprema Corte quanto aqueles que acreditam na noção de democracia pós-racial, estão fundamentalmente errados. O julgamento de George Zimmerman por um júri totalmente feminino, composto por cinco mulheres brancas e uma categorizada como “minoria”, trouxe à tona velhos debates sobre o racismo estrutural na sociedade estadounidense, hoje encoberto pela ideologia da pós-racialidade.
Em 26 de fevereiro de 2012, Trayvon Martin, um adolescente negro de 17 anos, foi assassinado por George Zimmerman, um homem branco latino de 28 anos, no condomínio fechado onde a namorada do pai de Trayvon vivia. Trayvon não morava ali, estava somente de visita e decidiu, no fim da tarde, comprar algo em uma loja de conveniência próxima. Ao voltar para a casa onde estava hospedado, Trayvon foi seguido por Zimmerman, coordenador da vigilância de segurança daquela vizinhança. Mas por que Trayvon foi seguido? Porque, para Zimmerman, ele parecia suspeito. Mas o que Trayvon havia feito para parecer suspeito? Era negro, e caminhava devagar; ao perceber que estava sendo seguido, começou a correr.
O que deveria ser o julgamento de Zimmerman, o agressor, acabou tornando-se o julgamento de Trayvon, a vítima. Era Trayvon, de fato, tão vítima quanto a acusação queria fazer parecer? Quanto suas ações haviam contribuído para sua morte? Era ele um aluno e filho exemplar? Por que andava tão lentamente pelas ruas daquele condomínio majoritariamente branco? Por que ele simplesmente não conversou com Zimmerman, entrou em casa ou ligou para a polícia? Não foi ele o causador do confronto? Ao final, o júri entendeu haver “dúvida razoável” acerca da culpabilidade de Zimmerman, um homem armado e conhecido por sua fama de “vigilante”, pela morte de Trayvon, um adolescente que carregava balas e um chá gelado nos bolsos de seu moleton.
Não há dúvidas de que o estado da Flórida tem uma das mais flexíveis e abrangentes regulamentações de legítima defesa. Contudo, apenas isso não explica o absurdo que representa a absolvição de Zimmerman. O elemento que restou negligenciado durante todo o processo judicial – embora fosse parte permanente do processo político que correu paralelo ao caso, incorporado nas mais diversas manifestações por justiça para Trayvon e sua família – é o racial. Sim, a sociedade estadounidense ainda é dividida por raça, que determina as oportunidades de estudo, de trabalho e de ascensão social. Sim, homens negros jovens representam a maioria da população carcerária deste país. Sim, mulheres brancas se guiam pelo estereótipo do homem negro sexualmente incontrolável e, portanto, a ser temido. Sim, homens negros jovens são seguidos e revistados por policiais diariamente. A lista das formas pelas quais o racismo estrutural se expressa na sociedade estadounidense e suas mais diversas instituições, que certamente foram parte da vida de Trayvon, é extensa. Mas o fato relevante aqui é que o processo jurídico foi capaz de apagá-lo, ele que é o prisma fundamental que nos permite compreender como o assassinato brutal de um jovem negro desarmado pode ainda ser classificado como “legítima defesa”.
Na comemoração do centenário da NAACP⁴, Obama incorporou em seu discurso a noção da responsabilidade individual. Dirigindo-se aos pais ali presentes, ele afirmou que devemos ensinar a nossos filhos que ninguém escreveu o nosso destino; ao contrário, ele está em nossas mãos. Mas naquela noite chuvosa de fevereiro de 2012, o destino de Trayvon não estava em suas mãos. Independentemente do que ele fizesse, ele era um menino negro perambulando por uma comunidade branca, muito lentamente ou muito rapidamente para não levantar suspeitas. O destino de Trayvon estava nas mãos de um vigilante que, munido de sua arma e de seu racismo, não enxergava além da cor da pele. O julgamento de Zimmerman tornou evidente algo que o mito da pós-racialidade havia contribuído para ofuscar. As dúvidas acerca da capacidade da democracia estadounidense em estender oportunidade e igualdade para os afro-americanos, feitas bandeira de luta do movimento Black Power nos anos 60, permanecem, cruelmente, atuais.

1 Tais estados são aqueles historicamente conhecidos por impor restrições e impedimentos explícitos ao exercício do direito ao voto por afro-americanxs e grupos sociais minoritários.
3 O caso foi levado à Suprema Corte pelo corpo jurídico da National Association for the Advancement of Colored People – NAACP, questionando a segregação racial nas escolas públicas em Topeka, no estado do Kansas. A Suprema Corte estabeleceu que tal política era inconstitucional, o que conduziu ao processo de dessegregação em todas as escolas públicas do país que observavam semelhante diretriz.
A National Association for the Advancement of Colored People foi fundada em 1909 e está entre as mais importantes e antigas organizações por direitos civis dos Estados Unidos.

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