domingo, 28 de julho de 2013

Médicos: as falsas polêmicas e o xis do problema


Direito à Saúde exige reforçar SUS (que alcançou conquistas importantes) e reverter privatização do sistema. Importação de doutores e extensão do curso são firulas

Lilian Terra

130719-SUS2

O anúncio do programa Mais Médicos pelo governo federal gerou uma forte reação da classe médica, que ainda não foi compreendida pela maioria. A polêmica medida foi adotada pelo governo como resposta a uma das demandas colocadas nas manifestações de junho: saúde pública de qualidade.
O programa consiste basicamente nas seguintes medidas:
• Estende o curso de medicina por mais dois anos de prestação de serviços no Sistema Único de Saúde (SUS) antes que o médico receba a licença definitiva para clinicar . A formação médica, neste caso, passa a ter oito anos de duração.
• Amplia o número de vagas de residência médica.
• Amplia o número de vagas em medicina nas universidades federais até 2017, sendo 1.815 nos cursos já existentes e 1.800 em novos cursos.
• Prevê a contratação de milhares de médicos para suprir a carência destesprofissionais em vários municípios do interior do país. Isso se dará via oferta de bolsa, e não contrato de trabalho. Caso as vagas não sejam preenchidas por médicos brasileiros, serão abertas a profissionais estrangeiros sem necessidade de validação do diploma da faculdade de origem.
As entidades representativas da classe médica, como Conselho Federal de Medicina, Associação Médica Brasileira, Federação Nacional dos Médicos e Associação Brasileira de Educação Médica mostraram-se revoltadas com as medidas anunciadas, principalmente quanto à importação de médicos sem validação do diploma e à instituição de dois anos de serviço obrigatório no SUS. Com isto, deu-se início a um embate entre governo e médicos que tomou conta da imprensa e das redes sociais, sem no entanto aprofundar o debate de um tema tão caro à população.
Não há como negar os avanços do SUS nos últimos dez anos. Houve um aumento de 31,89% na cobertura do Programa de Saúde da Família (PSF), isto é, de 35,7% da população coberta em 2003 para 54,12% em 2013. Em 2003, 4.488 municípios brasileiros contavam com equipes de PSF. Hoje são 5.280 municípios, restando apenas 70 para se atingir a totalidade dos municípios do país.
O programa de Agentes Comunitários de Saúde, que nasceu em 1991 e deu origem ao PSF, foi ampliado em 13.2% e hoje atende 65,04% da população.
A mortalidade infantil atingiu as metas dos Objetivos Do Milênio – estabelecidas pela Organização das Nações Unidas (ONU) — cinco anos antes do prazo. Passamos de 23,3 mortes para cada mil crianças nascidas vivas, em 2003, para 16, já em 2010.
Houve o Lançamento do Programa Farmácia Popular, que, entre 2003 e 2005, aumentou em 75% o volume de recursos para compra e distribuição gratuita de medicamentos no SUS. Hoje existem 558 farmácias populares administradas pelo governo federal em funcionamento no país, e mais de 20 mil unidades privadas conveniadas ao programa. Desde a sua criação, o programa já beneficiou mais de 18 milhões de brasileiros. Além disso, o ministério da Saúde elevou os investimentos nos laboratórios oficiais, para produção de medicamentos, de R$ 20,7 milhões no período 2001/2002 para R$ 80 milhões em 2004.
Mas não só de avanços vive a saúde pública do Brasil. Em 2011, segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), o Brasil gastou US$ 477 per capita em saúde. Enquanto isso, o Uruguai investiu US$ 817,8, e a Argentina, US$ 869,4. O Reino Unido cujo sistema de saúde tem sido apresentado como referência pelo governo, gastou quase seis vezes mais: US$ 2.747.
Além disso, segundo dados do IPEA, entre 2003 e 2011 o gasto tributário em saúde cresceu de R$7 bilhões para quase R$16 bi. Ocorre que, entre 2003 e 2011, o equivalente a 26% do gasto público federal em saúde por ano, em média, deixaram de ser investidos no SUS para serem transferidos para o setor privado. Em 2011, por exemplo, metade do que o governo deixou de arrecadar de empresas ligadas à saúde deveu-se a isenções fiscais concedidas a planos de saúde — o equivalente a R$ 7,7 milhões. O crescimento dessa renúncia fiscal superou, entre 2003 e 2009, o gasto do governo em saúde pública, o que demonstra uma tendência de se privatizar a saúde no Brasil nos moldes do sistema estadunidense, considerado caro e ineficiente. Não é a toa que, entre 2003 e 2011, o faturamento do mercado dos planos de saúde quase dobrou e o lucro líquido cresceu mais de duas vezes e meia acima da inflação.
No entanto, não é este o debate que se vê na grande imprensa ou nas redes sociais. O governo sabiamente aproveitou a imagem do médico mercantilista e desumano que grande parte da população tem – e a tem porque de fato existem médicos assim – e passou a explorar o médico como o responsável pela falência do SUS. O que a população não tem enxergado, porque não tem acesso a esse tipo de informação, é que quem trabalha pelo SUS, hoje, o faz mais por idealismo que por dinheiro, porque recebe muito menos que no setor privado (que também explora, diga-se de passagem). Portanto, os médicos mais humanos que o ministro da saúde pretende formar já existem, e já são empregados do governo. O que eles desejam são condições de trabalho dignas. Muito do que uma equipe de saúde do SUS faz hoje em dia, no sistema como está, seria prerrogativa do SUAS – Sistema Único de Assistência Social – que na prática não existe. A equipe de saúde muitas vezes cuida até mesmo de transporte, alimentação e moradia de seus pacientes. Há casos em Centros de Assistência Psico-Social, os CAPS, em que a equipe administra até o dinheiro daqueles que não têm condição de fazê-lo mas não conseguem um curador.
Segundo as palavras do ministro Alexandre Padilha, uma das medidas do programa Mais Médicos, os dois anos de serviço prestado no SUS ao final do curso de medicina, serviriam para formar, “médicos especializados em gente”. Porém, os quatro últimos anos do curso de medicina já são em atendimento direto ao SUS, diariamente. São cursados em hospitais, ambulatórios e centros de saúde do Sistema Público de Saúde, inclusive em pequenas cidades sem infra-estrutura. Portanto, ainda na faculdade aprende-se o que é a vida da maior parte da população brasileira, aquela que não tem condições de pagar por saúde privada. Os estudantes que têm empatia por essa situação há muito tempo pregam mais distribuição de renda e menos desigualdade social. Há sempre os que não têm empatia e se voltam contra a “gente pobre” e contra o SUS. Há todo tipo de excrescência na sociedade e na medicina não seria diferente, infelizmente.
O contato com a realidade do país, dessa gente que precisa mais, não transforma todos. É pouco provável que mais dois anos de tal prática “humanizem” esses médicos. Talvez um acompanhamento psicológico ao longo do curso fosse mais proveitoso nesse sentido. Há quem afirme que os recém-formados precisam acostumar-se com o SUS e aprender a atuar dentro do sistema. É importante, porém, frisar que ninguém deve acostumar-se à realidade precária do SUS, porque não é isso que os brasileiros almejam: medicina de pobre e medicina de rico. A exigência expressa nos cartazes das ruas de junho deve ser mantida. Eles diziam; “Queremos saúde padrão FIFA”. Muitos médicos querem trabalhar em uma unidade básica de saúde que seja bela e equipada como o Hospital Sírio Libanês. E querem que a população tenha acesso a esse tipo de sistema. Afinal, quem vai querer sistema privado de saúde se o público for excelente?
A medida, todavia, não é somente inócua, é danosa. Caso sejam instituídos os dois anos de serviço na atenção básica, as equipes de saúde terão um novo médico a cada dois anos. Em se tratando de Saúde da Família, essa medida é muito prejudicial. Ser médico de família é justamente conhecer a fundo a saúde daquela população, de modo a, mais que atuar de forma curativa, poder aplicar medidas preventivas reais — o objetivo maior da saúde pública. Quando o estudante começar a se familiarizar com a cidade e sua população, seus dois anos de serviços estarão no final e ele voltará a sua cidade para se formar e fazer residência. Será necessário criar, do zero, novo vínculo com o estudante que chegar.
Outro ponto que sempre se discute é que os médicos formados em escolas públicas devem uma contrapartida à sociedade. Mas o que se esquece é que educação também é dever do Estado, como está explícito na Constituição de 1988. Portanto, é o Estado que deve a muitos destes estudantes os anos de ensino privado pelos quais pagaram, e deve a todos os outros que não tiveram acesso ao ensino superior público a culpa pela falta de igualdade de condições na luta pelas poucas vagas em universidade públicas. Se todos tivessem acesso a boas escolas públicas, do ensino básico ao superior, essa discussão sequer seria necessária. Um estudo da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), divulgado em junho deste ano, indica que o investimento em educação no Brasil aumentou de 3,5% para 5,6% do Produto Interno Bruto (PIB) entre 2000 e 2010, alcançando assim a média de investimento dos países da organização, que é de 5,4%. Porém, a forma como têm sido feitos estes gastos mantém a desigualdade no acesso ao ensino. Em 2010, a educação superior recebeu a maior parcela de gastos no Brasil ─ US$ 13.137 por estudante, mais que a média dos países da OCDE, enquanto os investimentos brasileiros em educação primária e secundária foram muito inferiores aos dos países ricos ─ US$ 2.653 por estudante, comparado com US$ 8.412 nos países da OCDE e US$ 11.859 nos EUA. Fica claro que o governo investe mais em educação superior pública, que atende principalmente aos mais abastados, em detrimento do ensino básico. Se a responsabilidade na divisão dos gastos é somente do governo, não faz sentido exigir contra-partida dos egressos das escolas públicas.
Não obstante o mérito inegável de haver médicos estrangeiros ou estudantes supervisionados, onde antes não havia médico algum, o governo considera essa medida a única resposta possível para uma suposta crise da saúde. Não há, porém, crise alguma, uma vez que os indicadores de saúde melhoraram nos últimos anos. O que há é um problema crônico, consequência de anos de subfinanciamento e má-distribuição de gastos. A falta de médicos também já poderia ter sido sanada de forma mais democrática, sem necessidade de obrigatoriedade de serviço para estudantes ou importação de médicos cuja qualidade não será comprovada por meio de exame. Em 2009, as entidades de classe fizeram uma proposta que ainda está em tramitação no Congresso. A categoria sugeriu a instituição da carreira de Estado para médicos, por meio da PEC 454/09. Caso houvesse sido aprovada na ocasião, a falta de médicos sequer estaria em discussão, pois não seria mais realidade no Brasil. Se o governo visasse uma medida mais definitiva, optaria por este meio, ao invés de Medida Provisória enviada às pressas para o Congresso.
Caso o SUS fosse financiado com 10% da arrecadação do Estado, como pedem os médicos, e não se transferisse tanto dinheiro para o sistema privado, tal medida seria perfeitamente possível. Com isto, esse médico e essa equipe de saúde com carreira de Estado lutariam por melhores condições onde trabalham, pois teriam mais vínculo em seu local de atuação. Essa seria a melhor medida que o governo poderia tomar: valorizar o médico, colocá-lo ao lado dos setores financeiramente empobrecidos, para que lutassem juntos por uma saúde de qualidade. Ninguém ganha em uma briga que opõe aqueles que atuam diretamente no atendimento à saúde da população e os que formulam as políticas de saúde pública.

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