Nem só de pneumonia morre o homem (ou a economia)
Ainda que o câmbio flutuante ajude, economia brasileira continua a sofrer os efeitos das enormes volatilidades a que a economia mundial está submetida em tempos de globalização financeira. Os impactos não são menos severos – apenas são diferenciados. Por Victor Leonardo de Araujo, da UFF
Victor Leonardo de Araujo
No artigo publicado aqui na Carta Maior no dia 24/05/2013, alertei para a intensificação da dependência da economia brasileira com relação aos fluxos financeiros internacionais. Em síntese: 1. a pauta exportadora está se primarizando; 2. dado o déficit crônico da conta de serviços e rendas (por causa do pagamento de juros e remessas de lucros para o exterior), a obtenção de superávits em transações correntes depende cada vez mais da demanda internacional por commodities e dos ciclos altistas desses preços; 3. os déficits em transações correntes, cada vez mais prováveis, são financiados por fluxos de capitais externos nas formas de investimento direto e em carteira, cuja remuneração se dá na forma de pagamento de juros e remessas de lucros; 4. o ciclo se realimenta, porque os pagamento de juros e as remessa de lucros elevam os déficits em transações correntes.
A situação das contas externas brasileiras tem sido mascarada por um dado reiteradas vezes repetido por membros da equipe econômica do governo federal: o estoque de reservas internacionais. Ao final de março de 2013, era de US$ 376 bilhões. Este patamar de reservas transmite a idéia de conforto: afinal de contas, diante da grandeza deste número, o governo brasileiro e o seu banco central teriam condições de combater qualquer crise cambial. Os tempos seriam outros: enquanto no passado os baixos níveis de reservas internacionais faziam com que pequenas crises financeiras no exterior se transformassem em grandes crises no Brasil, hoje em dia este risco estaria afastado. Ou, na analogia que os economistas gostam de fazer com a medicina: espirros no exterior que outrora provocavam pneumonia no Brasil, hoje em dia não mais nos afetam.
Ocorre que, em Economia, toda grandeza deve ser medida em termos relativos: US$ 376 bilhões na conta bancária de um indivíduo seguramente representam uma fortuna; mas para uma economia que, em março de 2013 (último dado disponível) acumulava uma dívida externa de US$ 324,7 bilhões, mais um estoque de investimentos estrangeiros diretos de US$ 747 bilhões, mais um estoque de investimento em carteira de US$ 638 bilhões – ou seja, para uma economia que acumula um passivo externo bruto superior a US$ 1,7 trilhões, o tão famigerado estoque de reservas internacionais, tantas vezes festejado pela equipe econômica do governo, já não parece tão grande, representando apenas cerca de 22% do passivo externo bruto brasileiro.
Este conceito é relevante porque dá a dimensão dos compromissos a saldar em moeda estrangeira. É claro que parte deste passivo é de longo prazo, e que, portanto, não será “saldado” em um horizonte visível – é o caso do investimento direto, por exemplo. Mas se considerarmos apenas o estoque de investimentos em carteira mais a dívida externa de curto prazo, ainda assim o estoque de reservas internacionais representa somente pouco mais da metade do total. A simples existência de um estoque de passivo externo de curto prazo quase duas vezes superior ao estoque de reservas já cria uma situação potencialmente desestabilizadora. As condições de liquidez internacional se movem na forma de ciclos, em grande medida determinados pela política monetária dos países centrais. O simples anúncio da provável recuperação da economia norte-americana e a expectativa de reversão da política monetária daquele país antes do tempo esperado provocou um movimento especulativo com o dólar que elevou a cotação da moeda norte-americana, que beirou os R$ 2,30 na última semana.
A economia brasileira continua a sofrer os efeitos das enormes volatilidades a que a economia mundial está submetida em tempos de globalização financeira. O elevado estoque de reservas internacionais afasta o risco de crises cambiais convencionais, mas o comportamento volátil da taxa de câmbio permanece, por causa da existência de um passivo externo de curto prazo muito superior ao estoque de reservas, dado o padrão de inserção da economia brasileira nos mercados financeiros internacionais. Basta que, por decisão dos operadores dos mercados financeiros, uma parcela pequena daquele passivo – porém grande para as dimensões do mercado cambial brasileiro – se mova para o exterior para que o Real sofra desvalorizações grandes o suficiente para trazer impactos como redução do poder de compra do salário e inflação. A resposta padrão dos formuladores da política econômica todos já conhecemos: elevação das taxas de juros e taxas pífias de crescimento do produto, que é o cenário que se desenha atualmente.
Até aqui estamos falando do passivo externo – não devemos nos esquecer dos fluxos que os remuneram, na forma de juros e lucros, e que já tratamos no artigo do dia 24/05. Foram remetidos ao exterior na forma de juros e lucros mais de US$ 37 bilhões entre maio de 2012 e abril de 2013, e essas cifras tendem a crescer, uma vez que a estratégia de atração de investimento externo segue forte como parte integrante da política econômica.
É bem verdade que os riscos a que a economia brasileira está submetida nos dias atuais são diferentes dos que estava submetida durante a segunda metade da década de 1990. Naquele momento, as opções feitas pelo governo FHC por um câmbio semi-fixo deixavam a economia brasileira mais vulnerável aos choques externos. Hoje o cenário é diferente. O próprio regime de câmbio flutuante permite uma melhor acomodação das crises externas, mas os impactos não são menos severos – apenas são diferenciados. A pneumonia não mais nos atinge. Mas nem só de pneumonia morre o homem.
*Victor Leonardo de Araujo é professor da Faculdade de Economia da UFF. E-mail: victor_araujo@terra.com.br
A situação das contas externas brasileiras tem sido mascarada por um dado reiteradas vezes repetido por membros da equipe econômica do governo federal: o estoque de reservas internacionais. Ao final de março de 2013, era de US$ 376 bilhões. Este patamar de reservas transmite a idéia de conforto: afinal de contas, diante da grandeza deste número, o governo brasileiro e o seu banco central teriam condições de combater qualquer crise cambial. Os tempos seriam outros: enquanto no passado os baixos níveis de reservas internacionais faziam com que pequenas crises financeiras no exterior se transformassem em grandes crises no Brasil, hoje em dia este risco estaria afastado. Ou, na analogia que os economistas gostam de fazer com a medicina: espirros no exterior que outrora provocavam pneumonia no Brasil, hoje em dia não mais nos afetam.
Ocorre que, em Economia, toda grandeza deve ser medida em termos relativos: US$ 376 bilhões na conta bancária de um indivíduo seguramente representam uma fortuna; mas para uma economia que, em março de 2013 (último dado disponível) acumulava uma dívida externa de US$ 324,7 bilhões, mais um estoque de investimentos estrangeiros diretos de US$ 747 bilhões, mais um estoque de investimento em carteira de US$ 638 bilhões – ou seja, para uma economia que acumula um passivo externo bruto superior a US$ 1,7 trilhões, o tão famigerado estoque de reservas internacionais, tantas vezes festejado pela equipe econômica do governo, já não parece tão grande, representando apenas cerca de 22% do passivo externo bruto brasileiro.
Este conceito é relevante porque dá a dimensão dos compromissos a saldar em moeda estrangeira. É claro que parte deste passivo é de longo prazo, e que, portanto, não será “saldado” em um horizonte visível – é o caso do investimento direto, por exemplo. Mas se considerarmos apenas o estoque de investimentos em carteira mais a dívida externa de curto prazo, ainda assim o estoque de reservas internacionais representa somente pouco mais da metade do total. A simples existência de um estoque de passivo externo de curto prazo quase duas vezes superior ao estoque de reservas já cria uma situação potencialmente desestabilizadora. As condições de liquidez internacional se movem na forma de ciclos, em grande medida determinados pela política monetária dos países centrais. O simples anúncio da provável recuperação da economia norte-americana e a expectativa de reversão da política monetária daquele país antes do tempo esperado provocou um movimento especulativo com o dólar que elevou a cotação da moeda norte-americana, que beirou os R$ 2,30 na última semana.
A economia brasileira continua a sofrer os efeitos das enormes volatilidades a que a economia mundial está submetida em tempos de globalização financeira. O elevado estoque de reservas internacionais afasta o risco de crises cambiais convencionais, mas o comportamento volátil da taxa de câmbio permanece, por causa da existência de um passivo externo de curto prazo muito superior ao estoque de reservas, dado o padrão de inserção da economia brasileira nos mercados financeiros internacionais. Basta que, por decisão dos operadores dos mercados financeiros, uma parcela pequena daquele passivo – porém grande para as dimensões do mercado cambial brasileiro – se mova para o exterior para que o Real sofra desvalorizações grandes o suficiente para trazer impactos como redução do poder de compra do salário e inflação. A resposta padrão dos formuladores da política econômica todos já conhecemos: elevação das taxas de juros e taxas pífias de crescimento do produto, que é o cenário que se desenha atualmente.
Até aqui estamos falando do passivo externo – não devemos nos esquecer dos fluxos que os remuneram, na forma de juros e lucros, e que já tratamos no artigo do dia 24/05. Foram remetidos ao exterior na forma de juros e lucros mais de US$ 37 bilhões entre maio de 2012 e abril de 2013, e essas cifras tendem a crescer, uma vez que a estratégia de atração de investimento externo segue forte como parte integrante da política econômica.
É bem verdade que os riscos a que a economia brasileira está submetida nos dias atuais são diferentes dos que estava submetida durante a segunda metade da década de 1990. Naquele momento, as opções feitas pelo governo FHC por um câmbio semi-fixo deixavam a economia brasileira mais vulnerável aos choques externos. Hoje o cenário é diferente. O próprio regime de câmbio flutuante permite uma melhor acomodação das crises externas, mas os impactos não são menos severos – apenas são diferenciados. A pneumonia não mais nos atinge. Mas nem só de pneumonia morre o homem.
*Victor Leonardo de Araujo é professor da Faculdade de Economia da UFF. E-mail: victor_araujo@terra.com.br
Nenhum comentário:
Postar um comentário