sábado, 27 de julho de 2013

O medo do outro

Num mundo em que a exposição da intimidade é estimulada, conflitos ligados à própria imagem marcam o mal-estar contemporâneo

Coryntho Baldez

O mal-estar do sujeito contemporâneo não é mais o mesmo da época em que Freud lançou as bases da Psicanálise, no século XIX. Antes, os conflitos interiores, que se relacionariam especialmente à sexualidade, deflagravam sintomas de defesa classificados pelo médico austríaco como histeria e neurose obsessiva. 

Hoje, o sofrimento psíquico estaria ligado à mudança do paradigma cultural. Seria também moral e ético, uma vez que lidamos, no dia a dia, com valores que não conseguimos sustentar, e tememos "não honrar a nossa tradição", na análise de Julio Verztman, psicanalista e médico psiquiatra do Instituto de Psiquiatria da UFRJ. O medo do "olhar do outro" teria produzido alguns sintomas novos, como a fobia social e a síndrome do pânico. E mais: a melancolia e a timidez - não a culpa - teriam lugar central no mal-estar do sujeito contemporâneo

Num mundo em que precisamos permanentemente mostrar e submeter a nossa imagem à avaliação do outro, patologias relacionadas à própria imagem, como os transtornos alimentares, também vão estar no centro do conflito do novo sujeito, de acordo com Verztman, que coordena o Núcleo de Estudos em Psicanálise e Clínica Contemporânea (Nepecc) do Ipub, ao lado das professoras Regina Herzog e Tereza Pinheiro.

Os dez anos de pesquisas do Nepecc resultaram no livro Sofrimentos Narcísicos, editado pela Companhia de Freud e lançado em 5 de outubro. A obra, que reúne diversos artigos - muitos deles inéditos - foi financiada pela Capes e está sendo distribuída para pesquisadores, bibliotecas e interessados em geral.

UFRJ Plural - Quais eram as principais características do mal-estar do sujeito que emergiu na modernidade, época em que Freud criou a Psicanálise?
Julio Verztman - Nesse período, o que caracterizava o sujeito, em primeiro lugar, era a hipertrofia do que se chamava interioridade. Uma interioridade marcada por conflitos ligados a várias esferas humanas. Freud acentuou bastante o conflito ligado à sexualidade. Esse conflito interior está marcado diretamente pelas relações com os outros, já que o sujeito não vive apenas dentro de si, e produzia então vários tipos de sintomas.

UFRJ Plural - Que sintomas eram esses?
Julio Verztman - O paradigma de mal-estar, que levou inclusive à invenção da própria Psicanálise, era a histeria. Havia também o que ele classificou de neurose obsessiva.

UFRJ Plural - Poderia detalhar mais esses sintomas?
Julio Verztman - A neurose é uma palavra que foi criada no final do século XVII, e não pelo Freud, que caracterizava simplesmente um tipo de afecção do sistema nervoso central, sem febre e sem inflamação. Como neurologista, Freud utilizou essa palavra. Ele classificou como psiconeurose de defesa os sintomas da histeria, da neurose obsessiva, de fobias e de alguns quadros psicóticos. O sujeito, de certa maneira, produzia determinados sintomas para se defender de algo que não se sabia direito o que era. Freud foi descobrindo isso muito aos poucos.

UFRJ Plural - E hoje, quais os fatores que estão forjando o novo sujeito da era contemporânea?
Julio Verztman - É importante ressaltar que a discuss&?o em torno do sujeito contemporâneo é bastante polêmica, tanto no meio psicanalítico como no psiquiátrico. Há colegas que legitimamente defendem que o mal-estar do sujeito transcende o tempo, ou seja, não haveria nada que estruturalmente produzisse um mal-estar contemporâneo descontínuo em relação ao mal-estar de outras épocas, sobretudo daquelas conhecidas pela Psicanálise.

UFRJ Plural - No entanto, um número cada vez maior de psicanalistas acredita que exista alguma coisa nova nesse mal-estar?
Julio Verztman - Sim, acreditamos que exista algo novo em relação ao sujeito interiorizado e conflitual do século XIX e início do século XX. A relação do sujeito com a sua interioridade se modificou. A culpa, por exemplo, que para Freud era o núcleo central das neuroses, é uma emoçãoque vem sofrendo várias modificações. A ponto de imaginarmos que a culpa agora é sempre do outro.

UFRJ Plural - Mas quais os sintomas mais perceptíveis dessa mudança?
Julio Verztman - Na Psicanálise, trabalhamos com os relatos clínicos do trabalho do psicanalista, com o que eles encontram na sua prática, com os sujeitos que têm procurado tratamento psicanalítico. Por exemplo, um diagnóstico que assumiu importância na Psiquiatria, a partir dos anos 1980, foi o quadro de fobia social. É um sentimento de ansiedade e desconforto diante da exposição ao olhar do outro, um temor de ser mal avaliado pelo outro. Isso leva as pessoas a evitarem o convívio social em situações banais da vida, como ir a um restaurante ou a uma festa. Nos Estados Unidos, a fobia social atinge em torno de 13% da população, já tendo sido considerada o terceiro transtorno mais comum em algumas avaliações epidemiológicas. É claro que temos que levar em conta que, quanto maior a epidemiologia de determinada doença, mais medicação se prescreverá para ela. Estar sempre encontrando uma classificação de doença para alguém significa atender também a interesses econômicos da indústria farmacêutica quando há um transtorno com medicação específica prevista para ele.

UFRJ Plural - A síndrome do pânico é outro sintoma do mal-estar contemporâneo?
Julio Verztman - Sim, mas é diferente da fobia social. É uma situação aguda de ansiedade, com sintomas físicos e mentais rápidos, e muito desconfortáveis, que levam as pessoas aos prontos-socorros, em situações que não se repetem. Uma hora o sintoma aparece no banho, outra hora quando a pessoa está na rua. Repetidas vezes, isso produz a realidade antecipatória, que é o medo profundo de experimentar a mesma sensação de novo. E leva muitas pessoas a não saírem mais de casa, por se sentirem desprotegidas.

UFRJ Plural - E que outras características marcam o sujeito contemporâneo que apresenta tais sintomas?
Julio Verztman - Por exemplo, é muito comum que uma pessoa com síndrome do pânico, quando perguntada sobre a origem desse desconforto, responda que não sabe dizer, que é uma sensação que vem do "nada". Essa dificuldade associativa que vemos em pacientes que têm síndrome do pânico é uma marca da atualidade. Na fobia social, isso também acontece. Nós chamamos esses pacientes de "sujeito tímido", até para não "patologizar", classificar como doença. E a timidez não é uma questão fundamental para Freud, nunca foi uma categoria pensada por ele.

UFRJ Plural - E como se manifestam a depressão e a melancolia contemporâneas? São também novos sintomas?
Julio Verztman - Já fui chamado para vários debates e palestras sobre esse tema. Recentemente, uma tinha o título "Depressão, a epidemia do mundo atual". Temos que ter certo cuidado com a palavra epidemia. Como falei, há muitos interesses econômicos envolvidos na popularização de doenças e na classificação de comportamentos que antigamente eram denominados normais como sendo patológicos.

UFRJ Plural - Mas a depressão é uma característica da atualidade?
Julio Verztman - Sim. Percebemos que a depressão é caracterizada, fundamentalmente, pela alteração da capacidade de a pessoa sentir as coisas como habitualmente sentia. Isso produz certa tonalidade mais sombria para o "existir", uma sensação de indiferença em relação à vida. Essa apatia ou abulia leva à redução da capacidade da ação. Esses sintomas são, realmente, muito pregnantes na contemporaneidade.

UFRJ Plural - E por que isso acontece?
Julio Verztman - Porque o sujeito contemporâneo está muito pouco preparado para o conflito, que era uma marca da modernidade. Diante da adversidade e do conflito, o sujeito contemporâneo deprime com mais facilidade do que parecia deprimir antes.

UFRJ Plural - Que fatores relacionados à cultura contemporânea estão na origem dessa nova condição do sujeito? Por exemplo, qual é, hoje, o papel do culto ao espetáculo na formação da subjetividade das pessoas?
Julio Verztman - Podemos caracterizar o sofrimento psíquico também como sofrimento moral, ético. Isso porque estamos sempre lidando com ideias que não cumprimos, valores que não conseguimos sustentar, com conflitos em relação a diferentes formas de agir. Sempre estamos com muito medo de perder o amor dos outros, dos entes queridos, de não honrar a nossa tradição. Então, o sofrimento psíquico é um sofrimento cujo lugar no mundo humano é absolutamente central. E o que regula esse lugar é a cultura, o nome que damos para condensar alguns valores hegemônicos que regulam as nossas condutas e maneiras de agir no mundo. Se esse mundo e essa cultura mudam de maneira profunda, como mudaram nos últimos 30 anos, é bem provável que o sofrimento psíquico mude.

UFRJ Plural - Dê um exemplo.
Julio Verztman - Vou dar um exemplo banal. Se jovens de 18 ou 20 anos perdem o HD do seu computador ou todas as fotos que tinham no Facebook, a sensação de esvaziamento interior que sentem numa situação como essa era impensável há 50 anos. É como se a história que estava dentro de cada um de nós fosse transportada para fora. E a fotografia dá exatamente a possibilidade de o outro ver aquilo que a gente também vê.

UFRJ Plural - Isso significaria um temor em relação &` experiência real?
Julio Verztman - No nosso núcleo de pesquisa tomamos muito cuidado em não ser saudosista. Ou em fazer uma avaliação negativa do presente, afirmando que somos empobrecidos em relação ao passado. Acho que é somente uma diferença. Num mundo em que tudo tem que ser visto nos mínimos detalhes, em que a sua imagem tem que ser mostrada e avaliada pelo outro o tempo todo, é evidente que patologias relacionadas à própria imagem vão estar no centro do conflito do sujeito contemporâneo.

UFRJ Plural - Que tipos de patologias estão relacionados à imagem?
Julio Verztman - A bulimia e a anorexia são exemplos. Quando me formei em Psiquiatria, na década de 1980, praticamente não tínhamos casos de anorexia nervosa. Hoje, vemos na prática clínica que os transtornos alimentares aumentaram muito nos últimos 25 anos.

UFRJ Plural - A tendência da chamada revolução digital, uma outra mudança cultural, seria formar indivíduos cada vez mais fechados em si mesmos e desengajados de projetos coletivos?
Julio Verztman - Não acredito, nesse caso. O que vemos são pessoas tímidas, com fobia social, tendo uma possibilidade de se relacionar com o outro antes inexistente. Vemos também grandes lutas políticas no mundo sendo travadas e mobilizadas através da internet. A Primavera Árabe é um exemplo. Não conseguimos mais ficar sem olhar o nosso telefone celular, sem usar o computador, e temos que tentar lidar com o que somos hoje da melhor maneira possível. Mas não acho que a tendência do ser humano atualmente seja se tornar introspectivo, ou isolar-se. Existem várias possibilidades colocadas.

UFRJ Plural - E o estímulo ao consumismo desenfreado e artificial, repercute na formação do indivíduo hoje?
Julio Verztman - Esse é um problema grave. Advento de novas tecnologias e mudança de relacionamento entre as pessoas acontecem. Mas o consumo passar a ter uma importância grande na definição do que são as pessoas, e isso é problemático. As pessoas buscam transformar objetos em marcas pessoais, o que é impossível. A não ser com grande empobrecimento de quem a pessoa é, um objeto jamais vai ser capaz de defini-la. Claro que, por trás disso, há uma indústria do consumo, uma indústria do crédito. Esse é um problema subjetivo muito importante. Realmente, a efemeridade da satisfação pelo consumo é muito grande e a satisfação que isso traz é transitória.

UFRJ Plural - Como enfrentar os sofrimentos psíquicos contemporâneos, uma vez que os relatos nos consultórios parecem estar cada vez mais empobrecidos e fragmentados?
Julio Verztman - Acho que, na verdade, os relatos estão diferentes, não empobrecidos ou menos ricos. Acostumamo-nos a lidar com um tipo de sujeito e, agora, temos que aprender a lidar com outro tipo. No campo da Psicanálise, posso dizer que há um esforço enorme para isso, com a criação de novas formas de atuar para enfrentar essas diferenças. Os relatos também não são propriamente fragmentados, mas menos marcados pela presença do sujeito inconsciente, do sujeito dividido, aquele que conta os seus sonhos nos consultórios e faz associações a partir deles, ou que faz um ato falho e pode pensar sobre que sentido ele pode ter na sua experiência.

UFRJ Plural - Hoje haveria então uma dificuldade maior de o sujeito dar sentido ao "não sentido" dos sintomas?
Julio Verztman - Isso. O sujeito tem mais dificuldade de associar. Todo o esforço psicanalista contemporâneo é aumentar a capacidade associativa do sujeito, é fomentar a sua capacidade de ele próprio perceber que tem condição de ter acesso à sua verdade por meio do trabalho associativo. Isso tem sido difícil. Como disse recentemente um psicanalista, o que era dado antes da análise na época de Freud agora é dado durante a análise com o psicanalista. O sujeito já chegava com um sintoma a ser interpretado. Hoje, esse sintoma e o que vai ser interpretado são construções feitas junto com o psicanalista.?

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