quinta-feira, 11 de julho de 2013

"Transição política no Egito não é golpe de Estado", diz especialistavotar

Para o professor Lejuene Mirhan, o que está em jogo é o futuro de um processo revolucionário

João Novaes
A destituição do presidente Mohamed Mursi no último dia 3 de julho pelas Forças Armadas do país não pode ser incluída no tradicional conceito de golpe de Estado como em demais países do Ocidente. Essa é a opinião do professor e arabista Lejeune Mirhan em entrevista para Opera Mundi.
Em contato com diferentes fontes no mundo árabe, ele acompanhou o desenrolar dos fatos nos últimos dias e ressalta as particularidades em torno do país árabe. Lejeune lembra que os militares foram apoiados por cerca de 40% da população do país que estava nas ruas pedindo mudanças; do papel do Exército, que ocupa uma posição de muito prestígio na sociedade egípcia; e também pelos erros na administração Mursi e a opção da Irmandade Muçulmana em tentar islamizar o país.

OM: Podemos ou não chamar o que aconteceu no Egito de golpe de Estado? 
Lejeune Mirhan: Não vejo dessa forma. Houve uma transição negociada entre as forças que se agrupam na FSN (Frente de Salvação Nacional, grupo de oposição): o grão-mufti de Al Azhar (mais antiga universidade do mundo), o papa coopta (mais antiga Igreja cristã da humanidade), setores do antigo regime e a classe média descontente.

Seu programa é simples e não dá margem para nenhuma ambiguidade, como diz a nota da esquerda francesa: 1) governo transitório com o presidente da Suprema Corte; 2) novas eleições e nova constituição; 3) mudanças profundas na economia para beneficiar as massas populares. Simples assim. A FSN é uma ampla frente de 35 partidos de oposição, apoiado pelo Partido Comunista egípcio, duas centrais sindicais, a União Nacional de Estudantes e a União de Mulheres.


População comemora deposição de Mohamed Mursi pelas Forças Armadas do país; 40% da população nas ruas

Três líderes de partidos chamam atenção nessa frente: o primeiro é Hamdeen Sabahi, que ficou em terceiro lugar na eleição presidencial em maio de 2012 e não foi ao 2.º turno. É patriota e de esquerda, nacionalista e nasserista [partidário do ex-presidente Gamal Abdel Nasser (1954-1970)], secular e foi apoiado pelos comunistas. Outro nome é de Mohamed El Baradei, Nobel da Paz e ex-diretor geral da AIEA (Agência Internacional de Energia Atômica, da ONU). Caiu em desgraça quando disse que o programa nuclear do Irã não tinha finalidades bélicas. Por isso não ganhou um segundo mandato na AIEA. [nomeado vice-presidente] E o terceiro nome é o de Amr Moussa, ex-secretário geral da Liga Árabe.

Na terça, dia 2 de julho, calculou-se em 30 milhões de egípcios nas ruas. Isso significa quase 40% de toda a população que exigia o fim de um governo que havia virado as costas para o povo. Ele vinha aplicando rigorosamente o receituário neoliberal e do FMI (Fundo Monetário Internacional) com o qual assinara acordo de submissão. Estava islamizando o país de forma acelerada, retirando direitos das mulheres e impondo a cada dia mais restrições às liberdades democráticas e políticas. Pior do que isso: nomearam membros do seu partido, o PLJ (Partido da Liberdade e da Justiça, ligado à Irmandade Muçulmana) para todos os cargos de Estado, sem se preocupar em colocar nenhuma outra força política.

Um acordo construído da oposição com os militares, apoiado pela esmagadora maioria do povo não pode ser chamado de “golpe” como a mídia apressou-se em chamar. Ademais, nenhum militar saiu da caserna nem ocupou cargo algum. Quem tomou posse foi o presidente da suprema Corte, o Supremo Tribunal Federal deles.


O ex-diretor da AIEA, Mohamed El Baradei é agora vice-premeimro-ministro egípcio

Só para compararmos: a insurreição civil ocorrida em Teerã com apoio de parte dos militares que derrubou o Xá Reza Pahlevi foi um golpe? O movimento cívico-militar de Chávez em 1992 contra a ditadura neoliberal de plantão à época foi um golpe? Essas coisas são relativas.

Eu, em meus artigos e entrevistas jamais usei esse termo.

OM: Quais serão as principais forças políticas que emergirão no cenário político do país? Quais as forças de esquerda que poderão emergir e fazer diferença?
LM: Vários são os blocos de forças e posso assim resumi-las: a primeira e mais forte é a FSN. É provável que nas eleições que ocorrerão em até um ano, Hamdeen Sabahi encabece a candidatura mais forte. O PC Egípcio, um dos mais antigos e fortes no Oriente Médio, deve integrar esse bloco eleitoral, junto com socialistas e nasseristas. Aqui não há um corte religioso, ainda que dessa frente participem sunitas e xiitas, cristãos cooptas e outras correntes.

Há dois outros blocos que é preciso ver que caminhos tomarão e qual será sua real força. Um deles será de ex-integrantes do governo Mubarak, que ainda possuem algum enraizamento popular e na máquina do Estado egípcio.

Por fim, o bloco da própria Irmandade. Aqui se pode imaginar a possibilidade real de que sejam proibidos o funcionamento de partidos islâmicos ou religiosos. Isso já ocorreu em muitos momentos da história do Egito.

A esquerda cresceu e muito nesses dois anos e meio que nos separam dos primeiros movimentos de janeiro de 2011. O PC Egípcio sai fortalecido no processo. Esteve presente em todos os momentos, emitiu notas, ajudou na organização dos protestos de 30 de junho. Aliás, esse dia foi marcado com um mês de antecedência e preparado meticulosamente. Não foi fruto de espontaneidade das massas, mas ação meticulosa e organizada. Jogou papel fundamental no movimento juvenil chamado de Tamarod que, em árabe, quer dizer “Rebelião” ou “Rebeldia”. Eles coletaram pela internet 22 milhões de assinaturas exigindo o fim do governo Mursi e convocaram o dia 30 de junho [que culminou na queda do chefe de Estado].

O que está em jogo no Egito de fato a direção de um processo revolucionário. Disputa-se a direção do que chamamos de Revolução Árabe que a mídia batizou de “Primavera”. Estou convencido que o levante entre os dias 30 de junho e 2 de julho contribuem para o retorno de um processo avançado tanto no Egito quanto no mundo árabe. Como já disse em publicação do ano passado, disputamos essa direção com os Estados Unidos e Israel que, tentam, a todo custo, manter sua hegemonia imperialista na região em detrimento de todos os interesses patrióticos. Arrumam sempre aliados que lhes prestam serviços.

Na atual fase, seus aliados são os reacionários do islã político da Irmandade e os terroristas da Al Qaeda da Síria. Serão derrotados.
OM: Haverá espaço políticos para a Irmandade Muçulmana e seus aliados nessa nova fase política do Egito?
LM: 
Acho que a Irmandade vai passar a cada dia mais por dificuldades. Eles são um partido religioso, tal qual o Hamas. Não há espaço na luta da resistência ao imperialismo para projetos religiosos. Eles são excludentes, exclusivistas. Religião é assunto privado e deve ficar na esfera da intimidade das pessoas. O estado deve ser laico e representar a todos independente de suas convicções religiosas, inclusive aos que não seguem religião alguma.

Veja o caso do Hezbollah no Líbano. Apesar de seu nome, “Partido de Deus” em árabe, ele não defende o estado teocrático islâmico para o Líbano. Faz alianças amplas e tem uma ação nitidamente antiimperialista. Sim, claro, é dirigido por muçulmanos xiitas, mas que fazem política não nessa condição, mas de lutadores pela soberania nacional libanesa, projeto político amplo que envolve cristãos, sunitas, comunistas e socialistas libaneses.

Portanto, tudo vai depender do curso como as coisas tomarão no Egito nestes primeiros momentos do governo provisório: composição, correlação de forças do bloco da FSN, justeza das propostas das forças de esquerda, em especial dos comunistas e socialistas, se eles ganharem as massas com suas ideias.

Pode, como disse na pergunta anterior, acontecer de vir a ser proibido o funcionamento de partidos religiosos e a Irmandade ser banida da vida política, como foi em grande parte de seus 85 anos de existência.

OM: O exército egípcio é dependente financeiramente dos EUA há décadas. Apesar dessa aparente ruptura, acredita que haverá uma mudança de posição dessa instituição que vá contra os interesses norte-americanos?
LM: 
Antes de responder à parte principal de sua pergunta, cabe esclarecer a forma como os EUA concedem ajuda financeira aos militares egípcios. É preciso desmistificar isso. Eles não recebem em dinheiro 1,5 bilhão de dólares todos os anos que saem do tesouro do EUA diretamente para os cofres do exército egípcio. Isso é mito.

O que ocorre é que os EUA compram esse valor em armamentos da indústria armamentista estadunidense e enviam ao país árabe. Para reequipar as forças armadas egípcias.


Soldados egípcios comemoram deposição de Mursi ao lado da população

É claro, há vínculos políticos e mesmo ideológicos de boa parte dos militares egípcios com os estadunidenses. Troca de informações, treinamento, escolas de formação de oficiais. Isso molda concepções, faz “cabeças” e traça estratégias. No entanto, nada disso é imutável. Esta aí um claro episódio que prova que parte das Forças Armadas acabam sempre se unindo aos anseios das grandes massas em momentos históricos. Quem não se lembra do filme de Serguei Eisenstein, Encouraçado Potenkim? Parte dos soldados se rebela contra a oficialidade reacionária.

Acho sim. Que o centro da questão será a hegemonia colonial estadunidense, inglesa e de outras potências na região. Isso esta em cheque. Na verdade, estamos presenciando um novo redesenho de todo o Oriente Médio que pode estar inserido em uma nova Ordem Mundial que contesta abertamente o poder da Europa e dos Estados Unidos. E passa a ter novos líderes e países no centro do tabuleiro da geopolítica mundial e não mais só os EUA.

Não sei se terá a dimensão do que foi o famoso acordo Sykes-Picot de maio e 1916, mas o que sei é que o Egito e o mundo árabe não serão jamais os mesmos que vimos nos últimos 40 anos. Presenciaremos mudanças profundas. Israel e EUA tem todos os motivos para ficarem apavorados com tudo isso.

OM: As novas manifestações no Egito poderão voltar a insuflar ou inspirar o mundo árabe da mesma forma que há dois anos?
LM: 
Como analista da política do Oriente Médio tenho que ser responsável nas opiniões. Prever as coisas é muito difícil.

O que sei é que o mundo árabe passa por mudanças profundas. Não à toa que o ministro da Defesa usou uma só palavra para classificar os acontecimentos da semana passada: “Terremoto!”

Forças patrióticas, progressistas, de esquerda e mesmo ao centro, saíram às ruas e continuarão saindo. Exigem mudanças profundas. Outras, mais interessadas em avançar ainda mais, falam abertamente em revolução. Querem na verdade derrotar o modelo econômico e não apenas trocar classes no poder.

Preste atenção ao Tamarod do Bahrein marcado para o dia 14 de agosto. É um protetorado estadunidense que não tem 300 mil habitantes. Mas é estratégico por abrigar a 5ª Frota da marinha dos EUA. 60% da população é de xiitas e é reprimida. Isso vai se alastrar para o Kuwait e a grande meta é a Casa de Saud (monarquia da Arábia Saudita). Os príncipes, xeiques, sultões, monarcas em geral que se cuidem. A fúria das massas árabes e das legiões, quando irmanadas tem um poder altamente explosivo. Vamos presenciar ainda fortes emoções.

Lejuene Mirhan é sociólogo, professor, escritor e arabista. Colunista da Revista Sociologia da Editora Escala e colaborador dos portais da Fundação Maurício Grabois e Vermelho. Foi professor de Sociologia e Ciência Política da UNIMEP entre 1986 e 2006.

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