sexta-feira, 5 de julho de 2013

Uma adivinhação em Berlim


Uma adivinhação em Berlim

Participei nesta semana de uma interessantíssima conferência em Berlim sob uma certa “Chetham House Rule” – a Regra da Casa de Chatham. O que diz esta regra? Que eu posso me referir às idéias que por lá circularam. Mas que não posso identificar os participantes, nem mesmo o conferencista. Pois o centro das atenções foi um cidadão de um distante país que defendeu mais investimentos por lá. Alguém imagina quem seria? O artigo é de Flávio Aguiar

Nesta última semana, de 01/07 a 05/07 em dias úteis, fui assistir a uma conferência em Berlim. Convocada por uma prestigiosa instituição financeira de presença internacional, com auxílio de outras, foi interessantíssima. Só que, para ser admitido à conferência, tive de concordar com uma certa “Chetham House Rule” – a Regra da Casa de Chatham. O que diz esta regra? Que eu posso me referir às idéias que por lá circularam. Mas que não posso identificar os participantes, nem mesmo o conferencista, nem citar qualquer um deles, inclusive este. Em suma, posso referir-me ao que foi dito, mas não a quem disse o quê.

A Chatham House abriga o Royal Institute of International Affairs, um “think tank” sobre geopolítica e relações internacionais em Londres, instituição fundada em 1920. A sua “Rule” foi criada em 1927, com a alegação de que ela facilitaria a “descontração” de seus palestrantes, debatedores e público. Várias instituições a adotam no plano internacional. Ela implica um acordo de cavalheiros, pois não há sanções legais a adotar. Isto cria uma certa atmosfera especial, um mix de”sociedade secreta ad hoc” com “club privé”, que reforça, sem dúvida, o sentimento de auto-estima de quem comparece a uma destas reuniões. Parece aquela reunião de convidados especiais do filme “Os vestígios do dia” (1993), direção de James Ivory, com Anthony Hopkins, Emma Thompson e Christopher Reeve.
Não me disponho a quebrar a regra. Não quero queimar meu filme, pois, se não há, como eu disse, sanções legais a temer, eu seria passível de eliminação sumária de próximos convites pelo mundo afora. Talvez isto pudesse até atingir meus descendentes e parentes próximos através de alguns graus e por algumas gerações. Não quero me responsabilizar por futuras exclusões, inclusive a minha, neste mundo de Deus já tão cheio delas. Mas enfim, vou relatar o que ouvi, e os leitores terão direito a fazer suas conjeturas.

O centro das atenções era um viajante que chegou um tanto de surpresa a Berlim, sem alarde na mídia ou imprensa. Veio falar de seu país para uma seleta platéia de cerca de 200 pessoas, a maioria influente no mundo dos negócios e investimentos internacionais.

Entre as atraentes idéias circulantes, destinadas a provar a adequação do tal país a investimentos internacionais, navegou a de que isto se devia a uma combinação virtuosa de responsabilidade fiscal e controle da inflação com salvaguarda e ampliação do mercado interno, através de programas sociais adequados e aumentos reais de renda salarial, individual e coletivamente, ao contrário do que está sendo feito maciçamente na Europa que soçobra e naufraga.

Circulou na sala entre divertida e estupefata a metáfora do médico e dos antibióticos. Um médico recebe um paciente que está com febre. Feito o diagnóstico, o médico receita uma caixa de antibióticos. Mas certamente ele não vai mandar o paciente tomar todos os comprimidos de uma vez só. Ao contrário, ele vai dizer para este tomar um de manhã, outro ao meio-dia e um terceiro à noite, durante dez dias. Daí circulou a ideia de que “Frau Merkel (o seu nome pode ser citado, pois ela não estava lá) não ia gostar de ouvir isso, mas na Europa fizeram e estão fazendo tudo errado, pois mandaram o paciente engolir a caixa inteira de uma vez só, quando deveriam ter dado mais tempo para ele se recuperar”.

Na sala rolaram milhares, centenas de milhares, milhões, bilhões, até trilhões em algarismos sobre o país em foco. O motivo desta verdadeira inundação de algarismos com muitos e muitos zeros depois de si, ou à sua direita, era mostrar que, ao contrário de muitos outros países, inclusive neste continente à beira-Sena e à-beira Reno plantado, onde o crescimento econômico tornou-se um zero à esquerda, muitas vezes antecedido por um sinal negativo, naquele país, apesar das dificuldades enfrentadas, o crescimento segue para diante, empurrado por uma feliz combinação de seu impulso com distribuição/transferência de renda, beneficiando o acesso ao consumo de camadas da população antes em grande parte dele excluídas. 

Circulou também a ideia de que crescer sem distribuir é uma falácia sem sustentabilidade, ao contrário do que pensa a malta ortodoxa. Junto, veio a imagem de que quando a parte da população que não estava admitida aos patamares de consumo – não só superiores, mas até médios e os inferiores – seus membros passam a querer mais, e a se manifestar por vezes com veemência nas ruas pedindo este a mais a que têm direito legítimo. Reconhecer a legitimidade destas manifestações faz parte da “virtu” política dos e das governantes. Como acabei não podendo fazer perguntas, fiquei sem saber o que a distinta reunião pensaria sobre os países da Europa, onde centenas de milhares de pessoas vãos às ruas periodicamente, em enfrentamentos com a polícia, e aparentemente ninguém as escuta. Ou se as escuta é para desqualificá-las, nos círculos de poder e na mídia a eles afeita.

Ninguém defende a ideia, por exemplo, de um plebiscito ou referendo sobre os planos de “austeridade”. Aliás, quem o fez, tempos atrás, foi liminarmente defenestrado do poder pelos de fato então todo poderosos na hegemonia da União Europeia e da Zona do Euro. Fiquei pensando, sem identificar exatamente aonde, que esta surdez ao clamor popular deve parecer uma prática autoritária e exótica, típica de sociedades atrasadas em relação àquelas onde o clamor é ouvido, mesmo que com dificuldades e não sem confrontos, enfrentamentos e disputas.

Enfim, foi um final de tarde rico em ensinamentos profundos e considerações inovadoras. Não sei exatamente qual foi o efeito das ideias circulantes sobre a seleta plateia. Só sei que ao término do encontro houve continuados e abundantes aplausos.

Fica aqui aos leitores o convite, como já disse, para que façam suas conjeturas. Porém peço-lhes o obséquio de, se o fizerem na letra viva de seus comentários, usarem engenho e arte para não citar nomes. Caso contrário, é capaz do espírito de Lord Robert Cecil (outro nome que pode ser citado, pois afinal ele também não estava lá), fundador daquele Royal Institute e seu primeiro presidente, se erguer do túmulo e vir me atormentar, proibindo-me de participar de futuras reuniões que aconteçam sob sua preciosa Chatham House Rule.

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