De passagem pelo Brasil para lançar seu livro, "Poder e desaparecimento: os campos de concentração na Argentina", a socióloga Pilar Calveiro conversou com o Correio da Cidadania. A relação entre o sumiço de pessoas na época da ditadura argentina e as formas de atualização que tais políticas receberam por distintos governos, tanto no plano interno quanto global, foi um dos importantes pontos abordado nessa entrevista.
Valéria Nader E Gabriel Brito
Valéria Nader E Gabriel Brito

"Eu diria que, passados mais de 30 anos do governo militar da Argentina, o estilo autoritário e as distintas formas de autoritarismo se reciclaram, não com o formato de campos de concentração, mas outros. Deve-se dizer que na América Latina segue existindo a modalidade do desaparecimento forçado, hoje aceito de distintas maneiras", disse Pilar.
Moradora do México, a argentina conhece de perto a violência policial contra as manifestações de cunho social, algo que destaca ter diminuído muito em seu país, reconhecendo o engajamento dos governos Kirchner na valorização das políticas de direitos humanos e também nos processos de memória, verdade e justiça. Desse modo, acredita que o Brasil de hoje tem condições de responder aos protestos de sua população de forma diferente, isto é, deixando de lado a violência policial.
Ainda sobre seu livro, explica que a narrativa é combinada entre sua escrita em terceira pessoa e diversos testemunhos em primeira pessoa. "Eu acredito que esses processos são vividos e pensados coletivamente. Não se trata do que cada um de nós viveu pessoalmente. Na realidade, o processo ocorre de forma coletiva. E também se pensa de forma coletiva. No livro, aparecem reflexões e intercâmbios entre diferentes pessoas que passamos por tais experiências", reflete.
A entrevista completa com Pilar Calveiro pode ser lida a seguir.
Correio da Cidadania: Uma das ideais essenciais de seu livro Poder e desaparecimento: os campos de concentração na Argentina é a tentativa de compreensão de como se recicla o ‘poder desaparecedor' nas sociedades que passaram pelo regime militar e que tiveram como modalidade específica de repressão os campos de concentração. Gostaria que você comentasse essa ideia e os conceitos que ela carrega.
Pilar Calveiro: As ideias essenciais do livro têm como matriz as manifestações autoritárias de uma sociedade. É algo antigo na América Latina e também na Argentina.
O desaparecimento como forma principal de repressão política se praticou em muitos países da América Latina, mas na Argentina se transformou na forma específica, central. A partir do golpe de 1976, praticamente se tornou a única forma repressiva.
Isso tem antecedentes, está fortemente ancorado nas características da sociedade. Entretanto, também continua a acontecer, de formas diferentes, mesmo após a queda do governo militar.
Eu diria que, passados mais de 30 anos do governo militar, o estilo autoritário e as distintas formas de autoritarismo se reciclaram, não com o formato de campos de concentração, mas outros. Deve-se dizer que na América Latina segue existindo a modalidade do desaparecimento forçado, hoje aceito de distintas maneiras.
Também é preciso destacar que na atualidade, no terreno internacional, isso ocorre, sobretudo, através do que chamam de "guerra antiterrorista"; e no plano interno também ocorre, naquilo que se chama de "guerra contra o crime organizado", em diversos países. Essas duas políticas dão cobertura ao desaparecimento forçado, que continua sendo praticado.
Portanto, o problema do desaparecimento de pessoas não ficou nos anos 70, mas é atual e precisa ser combatido no momento presente.
Correio da Cidadania: Como vê a sociedade argentina hoje, à luz desse entendimento?
Pilar Calveiro: Acredito que na Argentina houve um processo social muito interessante, a partir de todas as práticas de memória levadas a cabo pela sociedade civil. E também, nos últimos 10 anos, com apoio do governo, que teve uma intervenção muito interessante em propiciar práticas de memória, principalmente a partir dos julgamentos dos responsáveis pelos crimes de lesa-humanidade. Acredito que esse contexto permitiu um processo social importante e a sociedade, neste momento, se encontra numa situação muito diferente da que tinha nos anos 70.
Correio da Cidadania: Diria assim que a Argentina acertou as contas com seu passado?
Pilar Calveiro: Como dizia, o processo é muito importante, foi construído por diversos atores. No caso, os organismos de direitos humanos, que começaram a trabalhar depois do regime militar.
Posteriormente, esses organismos de direitos humanos se ampliaram, multiplicaram e encontraram sustentação social, mesmo ao longo dos anos 90, por exemplo. Foram anos bem difíceis, mas tais organismos mantiveram a luta pela memória e os direitos humanos, além de conseguirem na justiça processos que puseram fim às leis de impunidade.
Mais recentemente, mais situações foram construídas, a partir de um apoio do governo. Hoje, existem organismos de direitos humanos, distintas organizações da sociedade civil, grupos políticos que levantam questões de direitos humanos e o próprio governo envolvido no assunto.
Esse cenário confluiu para um processo de memória, verdade e justiça, que tem sido muito interessante.
Correio da Cidadania: O que diria do desempenho da Comissão da Verdade brasileira, inclusive tomando como parâmetro o processo argentino?
Pilar Calveiro: Não se pode comparar, são dois momentos diferentes, são histórias e sociedades diferentes. Mas, acredito, a Comissão da Verdade do Brasil precisa também desempenhar um papel importante em termos políticos e históricos, para que se alcance a verdade. Creio que está fazendo isso e avançando na direção do esclarecimento da história.
Correio da Cidadania: A partir desse contexto, e tendo em conta as manifestações populares que tomaram conta do Brasil e o enfrentamento do Estado a esta situação, como você enxerga a sociedade brasileira hoje?
Pilar Calveiro: Creio ser esta uma questão muito importante numa democracia. É preciso reconhecer e aceitar a mobilização social, sem respostas repressivas. Nesse sentido, é preocupante quando a mobilização social se depara com repressão. Precisa de outro tipo de resposta.
Correio da Cidadania: Vocês, na Argentina, recebem notícias sobre a violência policial brasileira?
Pilar Calveiro: Sim. Vivo no México e também vejo que o problema da violência contra as mobilizações e protestos chega a diferentes países. É preocupante. Poderia ser evitado, pois o Brasil tem um processo democrático que permite responder de formas diferentes às atuais circunstâncias.
Na Argentina, é claro que existe violência policial. Mas ela ocorre, basicamente, em algumas regiões do país. Podemos também falar da polícia da província de Buenos Aires, que sofre diversas denúncias.
Mesmo assim, é preciso dizer que um dos maiores compromissos, em todos os governos Kirchner, foi o de não reprimir o protesto social. Trata-se esta de uma das conquistas mais importantes dos últimos governos para o processo político argentino.
Correio da Cidadania: Como foi a experiência de escrever um livro em terceira pessoa, ainda que você tenha sofrido na própria pele os horrores da ditadura e da repressão? O que inspirou esta abordagem?
Pilar Calveiro: Eu acredito que esses processos são vividos e pensados coletivamente. Não se trata do que cada um de nós viveu pessoalmente. Na realidade, o processo ocorre de forma coletiva. E também se pensa de forma coletiva. No livro, aparecem reflexões e intercâmbios entre diferentes pessoas que passamos por tais experiências.
Na verdade, o livro é mais do que de uma narrativa de terceira pessoa, pois trato de passar por uma série de testemunhos. E uma série desses testemunhos está escrita em primeira pessoa. Dessa maneira, trato de fazer uma voz coletiva. São muitas vozes simultâneas, explicando e tentando entender o sentido de uma experiência complicada, complexa, mas que carrega muitos elementos em comum.
Valéria Nader, jornalista e economista, é editora do Correio da Cidadania;Gabriel Brito é jornalista.
Na verdade, o livro é mais do que de uma narrativa de terceira pessoa, pois trato de passar por uma série de testemunhos. E uma série desses testemunhos está escrita em primeira pessoa. Dessa maneira, trato de fazer uma voz coletiva. São muitas vozes simultâneas, explicando e tentando entender o sentido de uma experiência complicada, complexa, mas que carrega muitos elementos em comum.
Valéria Nader, jornalista e economista, é editora do Correio da Cidadania;Gabriel Brito é jornalista.
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