sábado, 2 de novembro de 2013

Argentina e Chile: caminhos opostos?



No último domingo ocorreram eleições para renovar parte do parlamento argentino. Abertas as urnas se soube que o oficialismo (governo) continuará sendo a força política mais importante no Congresso Nacional.

Wagner Iglecias
Em termos nacionais, no entanto, a Frente Para la Victória, de Cristina Kirchner, caiu dos 52,1% de votos obtidos em 2011 para 32,9% agora. Das 127 cadeiras que tinha na Câmara de Deputados passou para 130, mas viu diminuir de 43 para 40 o seu número de senadores. Número insuficiente de parlamentares para promover alterações constitucionais que pudessem dar à presidenta a oportunidade de concorrer a uma nova reeleição, como se aventava há alguns meses.
O governo ganhou em diversos estados, mas conheceu duras derrotas nas principais cidades do país. Na província de Buenos Aires os votos governistas despencaram dos 56,97% obtidos há dois anos para os 32,18% alcançados agora por seu candidato Martin Insarrualde, ex-prefeito de Lomas de Zamora, que foi derrotado de maneira inconteste pelo ex-kirchnerista Sergio Massa, da Frente Renovadora, agrupamento peronista não alinhado a Cristina. Massa não apenas alcançou 43,92% dos votos como foi o mais votado em 107 dos 135 municípios da província (que conta com um total de 164 municípios, se consideradas as cidades da Grande Buenos Aires). Em 2011 o governo havia vencido em 134 daquelas 135 cidades. Já no chamado “conourbano”, a Grande Buenos Aires, onde o governo havia ganho em todos os 29 municípios em 2011, com 59,5% dos votos, a derrota foi ainda mais forte, com êxitos agora em apenas 4 cidades e um total de 32,1% dos votos, ao passo que Massa saiu-se vitorioso nos outros 25 municípios e obteve 43,8% do total de votos da região. Na cidade de Buenos Aires, onde a Frente Para la Victória havia sido a agremiação mais votada há dois anos, saíram-se melhores o direitista Proposta Republicana (PRO) e o centro-esquerdista UNEN, com 34,46% e 32,33% dos votos respectivamente. Para piorar, o kirchnerismo não apenas não elegeu deputados na província e na capital como viu seu candidato a senador pela capital, Daniel Filmus, ser superado pelos oposicionistas Gabriela Michetti (direita) e Pino Solanas (centro-esquerda).
O governo também foi derrotado em Córdoba, Mendoza e Santa Fé, três das mais importantes cidades do país. As urnas colocaram em boa posição para a disputa presidencial de 2015 líderes como Julio Cobos, da União Cívica Radical, de Mendoza, e Hermes Binner, da Frente Cívico e Social, de Santa Fé. Para além deles outros oposicionistas já passam a figurar como presidenciáveis, como o direitista Maurício Macri (PRO), de Buenos Aires, e o próprio Sergio Massa. Ao mesmo tempo o kirchnerista Daniel Scioli, governador da província de Buenos Aires, e até antes de domingo tido como provável candidato governista para a sucessão de Cristina, vê seu nome se enfraquecer, e passará a ter daqui por diante a sombra de outros governadores alinhados a ela, como Sergio Urribarri, da província de Entre Ríos, que saiu-se vitorioso na eleição de domingo.
Muito se especula que os opisiconistas Cobos e Binner poderiam caminhar unidos para 2015, mas ao que parece o cenário político argentino será tão complexo e dividido nestes próximos dois anos que a derrota sofrida pelo oficialismo no domingo passado não significa, ao menos por enquanto, o encerramento do ciclo kirchnerista, como apresseram-se a dizer exultantes os veículos de imprensa que lhe são fortes adversários. Se por um lado o kirchnerismo, triunfante em 2011, foi duramente castigado nas urnas dos principais centros urbanos agora, por outro a oposição se divide em inúmeros partidos e grupos, e a profusão de candidatos pode acabar sendo um fator positivo para Cristina.
O caminho até 2015 não será fácil para o governo. Inflação dos preços de itens básicos de consumo da maioria da população, denúncias de corrupção envolvendo membros do governo e sensação de aumento da criminalidade em algumas regiões do país poderão ser temas espinhosos para Cristina. Por outro lado, pouco mais de 48 horas após a eleição de domingo a Suprema Corte do país decidiu, de maneira definitiva, a favor do governo a disputa com o grupo Clarín, mais importante conglomerado midiático argentino. Trata-se de uma vitória política importante do oficialismo, naquela que tem sido uma das mais difíceis batalhas que Cristina vem travando. Para além disso seus colaboradores mais próximos prometem que assim que voltar de sua licença médica a presidenta pretende retomar a dianteira do debate político nacional através de uma série de ações de impacto. Mas com tantos oposicionistas, porém, a artilharia sobre a presidenta será pesada. O jogo está definitivamente em aberto.
Já no Chile, após o rotundo fracasso do governo de Sebastián Piñera, de linhagem pinochetista e neoliberal, a corrida eleitoral parece quase uma barbada. A ex-presidenta e atual candidata Michelle Bachelet é favoritíssima para as eleições presidenciais que se aproximam. Lidera todas as pesquisas de intenção de voto, com boa vantagem em relação a Evelyn Matthei, a candidata da direita.
Bachelet montou um programa de governo participativo, com ampla consulta à sociedade civil, e tem o apoio do Partido Socialista, do Partido Comunista e da Democracia-Cristã. Entre suas principais propostas estão a convocação de um Assembléia Nacional Constituinte para dar um caráter mais democrático à Carta Magna daquele país, herdada do período da ditadura militar. A ideia é criar mecanismos de democracia mais participativa e reformar a administração pública no sentido de fortalece-la. Bachelet propõe também uma ampla reforma tributária progressiva, com maior carga de tributos incidindo sobre os mais ricos e menor carga sobre os mais pobres, uma profunda reforma do sistema educacional, reimplantando o caráter universal e gratuito do mesmo e a criação de um sistema público de previdência social, atualmente privado e inacessível a grande parte dos chilenos. Propõe ainda a criação dos ministérios da Mulher e dos Assuntos Indígenas e traz ao debate a questão da revisão da lei de drogas.
Caso eleita, e com maioria no Congresso, Michelle poderá fazer um governo bem menos moderado do que o que fez quando de sua primeira passagem pelo Palácio de La Moneda. Provavelmente ela reúnirá a partir de 2014 condições políticas mais propícias a isso do que as que tinha em 2006. O Chile frustrou-se com o governo Piñera, por muitos considerado inoperante, e parece cada vez mais ansiar pela (re)construção de uma ampla rede de políticas sociais que dê conta da exclusão social promovida pela intensa privatização dos serviços sociais promovida nas últimas décadas, governos da Concertación (frente política da qual Bachelet fez parte) aí incluídos.
Como se sabe, a América Latina na atualidade é um tabuleiro grosso modo dividido em dois grandes grupos: um mais à direita, com governos de matiz mais liberal e mais alinhado a Washington, e onde se incluem não somente o Chile, mas também Colômbia, Peru e México, e outro mais à esquerda, e com mais nuances, onde governos valorizam mais o papel do Estado no que diz respeito ao desenvolvimento social e econômico e buscam inserção mais autônoma no cenário internacional. Nele se inclui não somente a Argentina, mas também Brasil e Uruguai e versões mais radicais neste propósito, como Bolívia, Equador e Venezuela. No meio do caminho talvez tenha ficado o Paraguai, que alinhava-se mais à esquerda mesmo sob o moderado governo de Fernando Lugo, e desde a sua destituição parece caminhar mais a direita, insinuando-se inclusive para a Aliança do Pacífico, formada exatamente por Chile, Colômbia, Peru e México.
A eleição de domingo na Argentina acendeu o sinal amarelo para o governo de Cristina Kirchner, e uma eventual derrota em 2015 para forças de direita pode provocar mudanças muito significativas na correlação de forças na região. Assim como já está aceso há tempos o sinal amarelo na Venezuela do esquerdista Nicolás Maduro, que enfrentará um referendo revogatório em pouco mais de dois anos. Na contramão deste processo parece estar o Chile de Bachelet, anunciando-se para o próximo ano como capitaneado por um governo progressista, quiçá o mais progressista de todos desde a queda do ex-ditador Augusto Pinochet, em 1990. Talvez estejam neste momento Argentina e Chile trilhando caminhos opostos.
Wagner Iglecias é doutor em Sociologia e professor do Programa de Pós-Graduação em Integração da América Latina da USP e do Curso de Graduação em Gestão de Políticas Públicas da USP.

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