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Afegã usando burca; representação da mulher árabe no ocidente é comumente
Afegãs durante aulas em Herat
Mulheres em fábrica de tecido em Kabul
Sahar Khalifeh – Criaturas frágeis e oprimidas que desaparecem sob o xador ou
a burca. Essa é a eterna representação das mulheres árabes proposta pela mídia
ocidental, misturando despreocupadamente contextos e nacionalidades
É comum: na cultura árabe, assim como em outras, a mulher encarna o sexo frágil,
o outro sexo, o sexo desigual, que não herda nada, nem sequer o nome de família,
o sexo que pode trazer decência ou desonra. Minha família acolheu meu nascimento
com uma decepção que chegou às lágrimas, pois todos esperavam um menino. Para a
infelicidade de todos, nasci menina, a quinta da família, ou seja, a quinta
inconveniente e, para minha mãe, a quinta derrota. Comparada à esposa de meu tio,
que triunfou dando à luz dez inestimáveis garotos, minha mãe era a mulher maldita.
Apesar de mais bonita, mais inteligente e mais digna que minha tia (e que outras
mulheres da família), todos a consideravam a menos fecunda, a que não podia
trazer bons frutos ao mundo.
Afegã usando burca; representação da mulher árabe no ocidente é comumente
feita com burcas, xador ou Niqab
Herdei esses preconceitos e essas teorias. Desde a infância, escuto que as mulheres –
da família, do bairro, do mundo inteiro – são impotentes, indefesas, condenadas
pela natureza a permanecerem fracas.
Há alguns meses, contudo, minha irmã menor descobriu que eu era a única pessoa da
família Khalifeh a figurar na enciclopédia palestina. Com um suspiro de alívio, ela
sublinhou: “A enciclopédia não menciona meu pai, minha mãe, nem meu irmão ou
meu tio e seus dez filhos milagrosos, nem outro homem da família; apenas você!”.
Como mulher árabe, já passei por diferentes fases. Fui transformada por certas
influências e contribuí em parte para evoluções da nossa sociedade. Mesmo as
famílias árabes mais conservadoras agora enviam suas filhas à escola. Quando
formadas, tornam-se professoras, médicas, engenheiras, farmacêuticas, escritoras,
jornalistas, músicas ou artistas. Hoje, muitas parecem indispensáveis, mais fortes,
mais criativas e mais importantes que os homens.
Contudo, os meios de comunicação ocidentais nos representam como criaturas
horríveis, envelopadas em xadores, escondidas sob máscaras de couro, como cativas
de um harém dissimulado atrás dos véus. Pergunto-me por que eles nos veem dessa
forma, fixadas em uma realidade unívoca e imutável. Eles realmente acreditam que
somos criaturas diferentes do resto do gênero feminino, incapazes de mudar?
Na escola, eu tinha um professor que falava sempre em “mudança”, usando diferentes
tons e sentidos da palavra de acordo com os aspectos da realidade árabe que abordava:
a redistribuição da riqueza, a condição das mulheres ou os regimes políticos
obsoletos. Todos ao meu redor o respeitavam e o admiravam; os mais jovens queriam
ser como ele, e os menos jovens se mostraram dispostos a escondê-lo quando foi
perseguido pela polícia.
Esse professor maravilhoso não era o único a falar de mudança e justiça. A maioria
das pessoas instruídas acreditava nessas ideias e as defendia. Assim como ele,
milhares de homens esclarecidos foram perseguidos pela polícia ou padeceram em
prisões dos regimes apoiados e subvencionados pelas potências inglesa, francesa e
depois norte-americana.
O nacionalismo árabe conheceu seu auge durante os anos 1950 e 1960. Nossas ruas
ferviam e transbordavam esperanças de transformação. Adotamos uma atitude
rebelde e crítica em relação aos nossos sistemas sociopolíticos tradicionais. Os ideais
de libertação e justiça social estão em nossa literatura, nosso teatro, nossos cantos,
nossa música e até nas expressões que usamos na vida cotidiana. A literatura do
mundo inteiro irrigou nossa cultura. Nossas bibliotecas e nossas ruas regurgitam
livros que apelam à libertação, revolução e mudança: literatura existencialista,
socialista, negra.
Mulheres no Afeganistão em 1927
Esse entusiasmo chegava a todos, até aos camponeses iletrados e às mulheres, que
começaram a sair sem véu. Dezenas de milhares delas foram estudar na universidade;
algumas se engajaram em partidos políticos. Não apenas não usavam mais o véu,
como também passaram a se vestir com outras roupas, minissaia. Por mais
inacreditável que pareça, dançamos rock’n’roll e twist, apesar de nosso ódio pelos
ocidentais. Queríamos viver como eles, sem que para isso precisássemos ser
dominados.
Essa atmosfera idílica se dissipou quando Israel, apoiado pelo Ocidente, conseguiu
derrotar o dirigente egípcio Gamal Abdel Nasser, em 1967. Essa derrota – momento
em que os norte-americanos e todos os seus aliados regionais aproveitaram para
enfraquecer o movimento rebelde – significou também a de nosso movimento
nacional e nossas convicções socialistas. Eles apoiaram maciçamente o islamismo –
com milhões de dólares – como estratégia para abafar o nacionalismo progressista.
A Irmandade Muçulmana, até então vista com certa indiferença pela população, subiu
ao poder. A situação de nossa região nos anos 1970 e 1980 era similar à do
Afeganistão quando os norte-americanos apoiaram militarmente os islâmicos, em
particular Osama bin Laden, para conter os comunistas.
As instituições e os meios de comunicação ocidentais, seja a imprensa escrita ou a
televisão, o cinema ou as universidades, apresentam a mulher árabe como uma
criatura com véu dos pés à cabeça, cujos olhos nem sequer ficam à mostra. Supõe-se
que elas não são capazes de respirar ou pensar sob o xador, condenando-as a ser
sombras ambulantes que erram pela vida como feiticeiras ou fantasmas aterradores.
As vestes da criatura que mulheres como eu encarnam aos olhos ocidentais são
chamadas de “traje islâmico”. Contudo, estou convencida de que esse traje não é
islâmico ou árabe: trata-se de uma criação do Ocidente, uma manifestação
vergonhosa de seu imperialismo.
*
Minha mãe usava um véu transparente negro que cobria mais ou menos seu rosto e
seus cabelos, mas a deixava ver e respirar. O resto de sua roupa consistia em uma
saia ou vestido simples que chegava até os joelhos, com um colete justo que
desenhava seus seios e sua cintura. Nada a ver com o que hoje é considerado
“traje islâmico” – que transforma o corpo feminino em saco informe, massa sombria, coluna de fumaça.
Mulheres no transporte público em Kabul, Afeganistão nos anos 1950
No início dos anos 1950, minha mãe engajou-se no movimento sufur (pelo desuso do
véu), ao lado de muitas outras mulheres de sua geração. Algumas eram como ela,
oriundas de classes médias de grandes cidades árabes; outras, menos privilegiadas e
de vilarejos. Basta assistir às gravações de shows da cantora egípcia Umm Kulthum
ou de outros artistas da mesma época para constatar que nenhuma mulher da plateia
veste esse “traje”.
A desastrosa ocupação da Palestina por Israel em 1948 provocou uma degradação da
situação econômica, e isso teve um grande e direto impacto sobre as mulheres.
Milhares de famílias que perderam suas terras, suas casas e cujos maridos morreram
em combates precisaram afastar as mulheres da esfera doméstica para que pudessem
trabalhar ou estudar.
Nessa época, milhares de jovens palestinas instruídas começaram a ser vistas viajando
sem lenço, morando sozinhas sem ser casadas, e ainda assim conservando a honra
diante de seus próximos e da sociedade: elas ajudavam a suprir as necessidades de
famílias de baixa renda. Descrevi a condição dessas mulheres em meu romance “A
herança” (sem tradução, 1997). Com o tempo, não somente se passou a admitir, como
também a ser bem-visto, que elas financiassem os estudos universitários de suas
protegidas no Egito, Síria ou Líbano, o que por sua vez permitia que essas mulheres
obtivessem diplomas em medicina, farmácia, engenharia, direito ou outras disciplinas.
Aulas de biologia em universidade no Afeganistão nos anos 1950
Essas jovens mulheres qualificadas, corajosas e abertas para o mundo lançaram uma
onda de emancipação feminina e social, ainda que nosso conhecimento do pensamento
feminista se limitasse aos artigos publicados nos jornais egípcios por algumas
pioneiras como Al-Said, Suhair al Qalamawi e Durriya Shafik — cujos escritos não
iam muito além de temas como planejamento familiar, casamento precoce e
poligamia.
No entanto, logo depois de nossa derrota para Israel em 1967, regimes árabes
ditatoriais hostis ao socialismo, apoiados pelos Estados Unidos, aliaram-se a
grupos islâmicos fundamentalistas, generosamente financiados. Todos aqueles que
vestissem o famoso “traje islâmico”, por exemplo, receberiam um auxílio mensal de
15 dinares jordanianos para o homem (R$ 70) e 10 para a mulher. Os homens
deveriam vestir dishdasha ou jellabiya, sandálias de couro e manter a barba
comprida; as mulheres, por sua vez, precisavam vestir lenço sobre a cabeça e
uma longa túnica que chegasse aos dedos dos pés. Os beneficiários desse auxílio
também ganhavam um rosário e uma linda edição do Corão, além de um lindo
tapete de reza.
*
As organizações islâmicas priorizaram como alvo as jovens já ilustradas, pois
exerceriam influência sobre as outras. Também quiseram atingir as donas de casa.
Depois, a atenção se voltou para as mesquitas, escolas e universidades. Tudo isso não
poderia ter funcionado sem a ajuda (notoriamente financeira) dos regimes árabes
que manifestaram sua lealdade – ou submissão – aos Estados Unidos ao se alinharem
com sua estratégia, na esperança de que o islamismo triunfasse sobre os socialistas e
progressistas no seio de nossas sociedades.
Contudo, os fundamentalistas não se contentaram em impor suas vestimentas,
auxílios mensais e lugares de encontro (mesquitas). Com o objetivo de conquistar
os espíritos em escolas primárias e secundárias, nomearam para os
cargos-chave dessas instituições — em vez de professores — islâmicos
fundamentalistas, homens ou mulheres, cuja missão seria imprimir a ideologia
da religião na psique e no intelecto dos estudantes. Para completar essa educação,
os adolescentes seguiram um treinamento que lhes inculcava a disciplina militar
e as artes marciais em campos instalados nos desertos árabes, assim como no
Afeganistão e no Paquistão.
Afegãs durante aulas em Herat
Ironicamente, os Estados Unidos e seus aliados caíram na própria armadilha: o mal
já estava feito, e as organizações fundamentalistas começaram a projetar um regime
islâmico hostil ao Ocidente.
Atualmente, passamos por uma terrível crise intelectual, social e política. Somos
ameaçados por todos os lados sem saber qual das ameaças é mais brutal. De um lado,
o Ocidente, com suas megalomanias, exploração e colonização; de outro, o
islamismo, cujas supostas inovações nos levaram ao tempo dos haréns e da opressão.
Em outros termos, podemos escolher entre um Ocidente sinônimo de liberdade,
laicidade e ciência, mas também de colonialismo, e um islã impiedoso, que apela
para seus seguidores resistirem ao Ocidente, mas se opõe à ciência, à modernidade,
assim como à emancipação feminina e social.
E esse caos geral não se limita à nossa região; também toca o próprio Ocidente.
Assim, o véu e o xador tornaram-se símbolos de temor e aversão, a ponto de certos
países proibirem vestimentas islâmicas e o uso do véu em escolas e locais públicos.
Atualmente, somos alvo de preconceitos racistas.Aulas de biologia em universidade
no afeganistao nos anos 1950.
Mulheres em fábrica de tecido em Kabul
De minha parte, declaro àqueles que compartilham dessa visão estreita e egoísta que
somos mais próximas deles do que imaginam. Não costumamos repetir que o planeta
se transformou em uma aldeia? Como ondas humanas, desaguamos em suas praias.
Façam o que quiserem para limitar a imigração e intensificar os controles, sempre
encontraremos um meio de chegar a vocês, superar os obstáculos e afirmar nossa
presença. Na realidade, já estamos aí. Vocês podem negar nossa presença, mas
estamos ao seu redor, somos parte do seu mundo.
Não tenho nenhuma intenção de provocar raiva. Simplesmente quero defender minha
causa de maneira crua e concreta. Desejo que um leitor ocidental possa sentir o que
eu sinto, temer o que eu temo; quero que tenha consciência da dor que seus
governantes colonialistas infligem a nossos povos, da dor que infligem a mim.
Seus meios de comunicação me transformam em estereótipo, condenam-me,
falsificam-me. Quando apresentam uma mulher de burca como a encarnação da
mulher árabe, eles subentendem que a escritora que sou, assim como milhares de
outras mulheres instruídas e milhões de mulheres árabes modernas — muçulmanas
e cristãs — que vivem em países árabes são apenas aquilo: uma sombra cabisbaixa,
um corpo sem forma, incapaz de pensar e se expressar. Mas eles se enganam.
A imagem de uma mulher de burca não me enche de medo e terror. Tenho medo,
sim, de que um dia essa imagem represente minha filha, minhas netas ou a mim
mesma em um regime árabe sinistro, mantido na ignorância e por manobras cujo
objetivo é nos conservar como somos há muito tempo: uma jazida de petróleo a
serviço do mercado ocidental.
http://operamundi.uol.com.br/conteudo/samuel/41731/a+armadilha+das+imagens+
ocidentais+que+represent
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