terça-feira, 28 de agosto de 2012

Entre a Primavera Árabe e o Outono Europeu


  23 DE NOVEMBRO DE 2011

Todos os meses, centenas de imigrantes vindos de diversas partes da África desembarcam em Lampedusa, ilha italiana que, de paraíso turístico, passou a ser foco de crise humanitária
Por Graziano GrazianiOpera Mundi
A ilha mais ao sul da Itália. É assim que Lampedusa – mais perto da Tunísia do que da Sicília – é conhecida. E a proximidade com o continente africano é o que vem transformado o local na porta de entrada da Europa para milhares de imigrantes, conforme testemunhou o Opera Mundi nessa série especial. Terra de pescadores, Lampedusa era um popular destino de turismo na Itália mas, com o agravamento da crise econômica mundial, se tornou o epicentro de uma outra crise: a humanitária.
O fenômeno começou nos anos 1990, quando as pessoas chegavam sozinhas à costa da ilha e os próprios nativos as ajudavam no desembarque. Mas os fluxos foram crescendo cada vez mais. O governo italiano resolveu intervir, criando um centro de apoio no aeroporto e, por fim, instituindo o CSPA (Centro de Atendimento e Primeiros Socorros), em Contrada Imbriacola, centro da ilha.
Nesse meio tempo, aconteceram diversos naufrágios em massa forçados, posteriormente condenados pelo mundo inteiro. Foi descoberto que Roma estabeleceu acordos com países do Norte da África, que permitiam os naufrágios, em uma clara violação do direito internacional e italiano.
Até setembro desse ano, os imigrantes que conseguiam chegar a Lampedusa eram levados ao CSPA e, depois, encaminhados a outros centros, já no continente. Porém, uma revolta de tunisianos no dia 20  de outubro destruiu o local, cuja capacidade era de 804 pessoas. Além do CSPA, a ex-base militar de Loran, situada do lado oposto da ilha, abriga 201 lugares. É lá que ficam os menores de idade desacompanhados.
Loran era da OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte) e uma prova de como a ilha era estratégica na Guerra Fria e durante as tensões com o regime de Muamar Kadafi, na Líbia. Em 1986, Lampedusa foi alvo de ataque – fracassado – do regime: os mísseis Scud caíram a somente dois quilômetros da costa.
Rotina do refúgio
Conforme o barco chega a Lampedusa, é possível avistar um clássico porto mediterrâneo, localizado perto de diversos casebres coloridos e acolhedores. O único elemento que remete aos imigrantes é uma guarnição da Cruz Vermelha, com tendas militares. Subindo em direção à vila, surgem diversos cartazes anunciando escolas de mergulho e serviços de barcos para excursão. A vila é construída ao longo de uma única artéria principal, a via Roma, onde se aglomeram lojas de souvenir e os bares da moda, onde os turistas relaxam na volta do mar.
É difícil associar a dimensão do desembarque de imigrantes à atmosfera turística, apesar de o CSPA ficar a poucos minutos da badalação. Inacessível a jornalistas, o local faz parte da política do governo de tornar os imigrantes invisíveis. Os navios da Guarda Costeira e da Guarda de Finanças interceptam os barcos e, se são capazes de navegar, são escoltados até o antigo porto. Caso contrário, os imigrantes são trasferidos por meio de botes até terra firme, longe do olhar dos turistas e moradores de Lampedusa.
Quem alerta as organizações humanitárias são as mesmas forças armadas, meia hora antes de atracarem. Os primeiros a visitarem os imigrantes são os médicos da Cruz Vermelha e do Médicos Sem Fronteiras. Eles fazem os primeiros socorros, mesmo que o primeiro contato com uma equipe médica, em casos de emergência, aconteça a bordo do navio. Lá, porém, o acesso é permitido somente ao pessoal do SMOM (Sovrano Militare Ordine di Malta).
Depois de identificar as pessoas que precisam de ajuda, a equipe do ACNUR (Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados) informa os imigrantes sobre seus direitos, com a ajuda de mediadores culturais. Trata-se de uma etapa delicada, porque o destino deles depende da compreensão do processo de lei. Se pedem asilo político, e se presume que têm esse direito, vão para um CARA (Centro de Atendimento para Requerentes de Asilo), onde aguardarão a aprovação do pedido. Se não, são destinados a um CIE (Centro de Identificação e Expulsão). Nesses locais, o regime é parecido com o de uma prisão.
O cansaço da viagem, as condições de saúde, além das diferenças culturais, podem resultar na má compreensão dos direitos. Para a maioria, a permanência nos centros de Lampedusa, que seria um primeiro atendimento, dura mais do que o esperado. Além disso, a estrutura da ilha não é adequada, tanto por questões de higiene, como porque nos centros não há trabalho ou atividades. O resultado é que a frustração dos imigrantes cresce a cada dia e, com ela, a incerteza do futuro.
Tareke é um eritreu que presta serviço como mediador cultural para a Save the Children, uma das associações atuantes. Há alguns anos, era ele quem precisava de ajuda. “As pessoas chegam assustadas à Lampedusa, não sabem o que as espera. Nossa tarefa é a de informá-las sobre o difícil percurso até a Itália”, explica.
Quando fugiu da Eritréia, Tareke passou primeiro pelo Sudão, e depois caminhou por dez dias pelo deserto até Trípoli. “Lá as condições de vida são deploráveis. Éramos em torno de 80 em uma cela, tão apertado que, se levantasse um pé, não sabia como apoiá-lo de volta”. Na segunda tentativa, o eritreu chegou à Sicília. Em Palermo, as dificuldades começaram: “Eu queria chorar, porque as pessoas me evitavam. Tive que pedir esmolas para conseguir 6 euros”. Algum tempo depois, Tareke foi entrevistado para um emprego nos Médicos Sem Fronteira (MSF) e posteriormente, foi contratado pela Save the Children.
Atmosfera fabricada
Mesmo fora do centro para imigrantes não existe a atmosfera de tranquilidade e confiança que o governo pretende construir. Seja porque a presença militar é forte na ilha, seja pelos sinais concretos da grande onda imigratória. Um exemplo é o cemitério dos barcos, onde as pequenas embarcações de madeira, algumas com frases em árabes, se empilham umas nas outras.
Nos bares, entre as cadeiras de vime, pode-se ouvir menção aos últimos desembarques. No retorno de lugares encantadores como a Ilha dei Conigli, os turistas se deparam com proprietários de bares, que reclamam que a estação turística está mal. Estão convencidos de que as várias imagens sobre os desembarques em Lampedusa prejudicam o turismo. “Há quem creia que, nadando, se possa trombar com um cadáver”, diz uma agente de turismo.
É em Lampedusa que as diferenças irreconciliáveis de dois mundos tão diferentes – o ocidente rico e o sul do mundo que foge da fome – realmente entram em contato.
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