Publicado em 1 de fevereiro de 2016
Sociedade do consumo é também a sociedade do simulacro; mas utilizaremos os termos precisos também para aqueles mais poderosos economicamente?
Por Alceu Luís Castilho (@alceucastilho)
Feirantes compram produtos com agrotóxicos e vendem como se fossem orgânicos. O Fantástico identificou neste domingo alguns deles, que definiu como “fraudadores que se aproveitam da boa fé dos consumidores para faturar muito”. “São picaretas que se aproveitam de um mercado que cresce mais de 20% ao ano e não é fiscalizado suficientemente”, definiu a revista eletrônica da Globo.
Não se trata de defender esses farsantes. A questão é outra: a utilização da expressão “picaretas” será jornalisticamente utilizada em outras situações? Para outros tipos de acusados, eventualmente com um faturamento um tanto maior que o desses feirantes de Florianópolis? Estamos, de fato, de olho, nas distorções da sociedade do consumo (ou em outros tipos de enganadores), ou se trata de uma indignação seletiva?
NO MUNDO EMPRESARIAL
Lembro-me quando os três maiores fabricantes de papel higiênico reduziram o tamanho dos rolos, de 40 metros para 30 metros, sem se recordarem de diminuir os preços. Vão-se quase 15 anos. O governo falou em “maquiagem”, em processar as empresas por formação de cartel. Mas não me lembro de ter lido a palavra “picaretas”. Será uma categoria jornalística nova?
Empresas como a Nestlé e Pepsi foram multadas por não informarem que determinados produtos contêm transgênicos. Que termos utilizaremos em casos assim? E as escolas que burlam o Enem ao criarem salas especiais, com os melhores alunos, para que sejam melhores ranqueadas? Para não falar do marketing da responsabilidade social, presente em empresas que causam catástrofes ambientais gigantescas.
NA POLÍTICA
A palavra “picaretas” foi consagrada pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva em outro contexto. Foi em 1993, ao falar dos congressistas: “Há uma maioria de 300 picaretas que defendem apenas seus próprios interesses”. O ex-governador cearense Cid Gomes falou em 400 “achacadores”.
Aí a gente lê sobre desvio de verbas de merendas escolares – por exemplo, na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo – e, diante do novo vocabulário do Fantástico, pensa: possivelmente já há uma equipe destacada para falar de um tipo específico de “picaretas”, aqueles que nem falsos produtos orgânicos põem na mesa das crianças. Desviam a verba. E “para faturar muito”.
NA POLÍCIA
Na sexta-feira quatro policiais civis de Taubaté (SP) foram presos em operação contra o tráfico de drogas. Dois deles são da Delegacia de Investigação Sobre Entorpecentes. Ou seja, ofereciam um determinado serviço – o combate a um tipo específico de crime – e praticavam o próprio crime. Vendiam gato por lebre. Serão chamados de “picaretas”, com direito a reportagem no Fantástico?
NA IMPRENSA
O Ministério Público Federal investiga os programas jornalísticos do mundo cão por violações de direitos que, em tese, deveriam combater. Em apenas um mês, 1.936 narrativas possuíam violações de 12 leis brasileiras: 1.709 casos de exposição indevida de pessoa; 1.583 de desrespeito à presunção de inocência; 151 ocorrências de incitação à desobediência ou desrespeito às leis; 127 de incitação ao crime e à violência; 24 registros de discurso de ódio e preconceito; 18 ocorrências de tortura psicológica e degradante. Seria tudo isso uma “picaretagem”?
Por coincidência, esses mesmos programas jornalísticos não costumam falar de crimes cometidos pelo poder econômico (como as distrações relativas a produtos transgênicos), e pouco falam de crimes cometidos por anunciantes ou portadores de determinados distintivos. Esses brasileiros expostos ao linchamento público não são executivos de grandes empresas, ou policiais vendedores de drogas.
A PALAVRA
Talvez alguns procedimentos jornalísticos invoquem mais o outro sentido metafórico da palavra “picaretas”, aquele que remete a trabalhos realizados de forma inepta. A picaretagem não necessariamente como desonestidade, mas como deficiência de formação. Outros, porém, parecem saber muito bem o que estão fazendo – jogando a serviço do poder.
No caso do Fantástico, observa-se que o programa prestou um serviço de utilidade pública. Feirantes que embalam produtos com venenos e vendem como se fossem orgânicos são indefensáveis. Mas imaginem só se tivéssemos um jornalismo que fosse indignado com a utilização, em si, de venenos, com a inoculação diária de agrotóxicos – muitos deles proibidos no exterior – em nossa dieta. Ou que falasse sistematicamente de policiais criminosos.
Ou seja: não faltam picaretas. Ou fraudadores, farsantes, enganadores, ou gente querendo “faturar muito” a qualquer custo. O jornalismo é o exercício diário da escolha de alguns deles, em detrimento de outros. Vende-se como uma espécie de produto orgânico, impoluto – mas se prestarmos bem atenção identificaremos ali uns cheirinhos meio esquisitos.
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