segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

O que significa o ‘Não’ a Evo Morales



Cristina Fontenele
Adital

Sobre a repercussão do resultado do referendo na Bolívia, que decidiria sobre a possibilidade ou não do atual presidente, Evo Morales, poder se candidatar a mais uma reeleição, a Adital ouviu o mestre em Planejamento e Políticas Públicas pela Universidade Estadual do Ceará (Uece), no Brasil, Francisco Claudio Melo Fontenele, que, atualmente, cursa Doutorado em Ciências Políticas e Sociais, na Universidade de Integra das Américas (Unida) em Assunção, Paraguai. Segundo ele, o "Não” a Evo Morales – escolhido pela maioria dos/as bolivianos/as – representa na conjuntura política da América Latina mais uma batalha perdida para os que engendram o projeto político social-popular instalado na América do Sul, pelo desde a ascensão do ex-presidente da Venezuela, Hugo Chávez, ao poder, em 1998.
Entre as principais conquistas do governo de Evo Morales, o cientista político aponta o movimento de esperança que o país nunca havia experimentado em sua história recente, acenando para os bolivianos a possibilidade de um futuro melhor.
Adital: O que significa o "Não” a Evo Morales, em termos políticos? O que está por trás disso?
Francisco Claudio Melo Fontenele: O NÃO a Evo/Linera [vice-presidente Álvaro García Linera] significa o NÃO da elite boliviana aos indígenas em estado de indigência, na Bolívia. Nos bastidores [dessa derrota] estão: a embaixada estadunidense, uma USAID [Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento] frustrada por ter sido desmascarada e expulsa da Bolívia, além de uma mídia detratora sintetizada em Carlos Valverde [jornalista de oposição].

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Segundo o cientista político Francisco Fontenele, o "Não” a Evo Morales significa o "Não” da elite boliviana aos indígenas em estado de indigência.

Adital: Alguns especialistas acreditam que não é positivo para a democracia ter um governante de forma quase ininterrupta no poder. Como avalia essa perspectiva?
Fontenele: Toda regra comporta uma exceção. O caso Evo é diferente, pois é a primeira vez que um indígena governa a Bolívia, um Estado Plurinacional composto eminentemente por nações indígenas. Evo, por si, é um precursor indígena na alternância de poder entre a maioria indígena precarizada e a minoria que não é indígena, mas é dona de quase tudo de bom na Bolívia.
Para os ameríndios, Evo significa aquilo que significou [Nelson] Mandela para os sul-africanos, quando assumiu o Governo da América do Sul. Será que alguém ousaria dizer que Mandela pretendia se tornar um ditador, caso ele quisesse ter permanecido no governo sul-africano por mais tempo, se sua saúde assim o permitisse?
A vitória no referendo não daria um terceiro mandato a Evo/Linera, mas a chance de disputar um novo mandato, para implementarem ações incluídas nos instrumentos de planejamento de longo prazo atuais da Bolívia. Ou seja, o Plano de Desenvolvimento Social e Econômico da Bolívia 2016-2020 (para o bem viver) e a Agenda Patriótica para o Bicentenário em 2025.
Por isso, sem favor algum, afirmo que Álvaro Marcelo García Linera é, hoje, uma das lideranças mais bem preparadas para o governo no campo social-popular sul americano. Com toda a humildade que lhe é peculiar e o desejo de servir à causa indígena, Linera deu o melhor de si para ajudar Evo Morales a gerenciar o poder rumo à transformação social, quando as condições políticas e, sobretudo, econômicas eram desfavoráveis.
Adital: Alguns grupos indígenas apoiaram o "Não" no referendo. O que significa receber o voto contrário da própria etnia?
Fontenele: A Bolívia é um país indígena plurinacional. Não há hoje nem ontem. Evo é do povo aymara. Neste, nos quíchuas e em outras etnias há simpatizantes e antipatizantes de Evo/Linera.
Por qual motivo será que Roberto Freire [deputado federal, um dos principais opositores ao governo do Partido dos Trabalhadores – PT] não gosta de Lula [ex-presidente do Brasil]? Será que todos os pobres votaram em Lula, Dilma [Rousseff, atual presidenta], e estão ombreados com eles neste momento político difícil, não obstante a agenda social implementada em seus governos? Na Bíblia ou na vida mundana, eis a expressão que melhor sintetiza a força da oscilação da opinião pública: a mão que afaga é a mesma que apedreja.
No presente, sempre ficam resquícios do passado. É como a Guerra da Tríplice Aliança nas relações entre brasileiros e paraguaios. De vez em quando, isto respinga... Até mesmo entre "povos brancos e ditos civilizados”, como no meio acadêmico.
Para muitos paraguaios, nós, os brasileiros, nossos ascendentes, ancestrais, somos culpados pelas mazelas que, hoje, o Paraguai enfrenta para se desenvolver... Tendo em vista a Guerra da Tríplice Aliança, a Itapu Binacional, etc.
No mais, a situação de vulnerabilidade faz com que um eleitor boliviano seja suscetível ao aliciamento eleitoral e sucumba em suas convicções. Será que isto não ocorre também no Brasil? Aqui mesmo no Ceará, em determinada Casa Legislativa, já ouvi parlamentar dizer que votava até mesmo contra si, para agradar o governo, enquanto este tivesse hegemonia.
O resultado apertado da eleição, o voto contrário indica também que EVISTAS [partidários de Evo] como NÃO EVISTAS têm suas liberdades políticas respeitadas na Bolívia, contrariando aquilo que é fantasiado pelo segmento midiático falastrão hispânico.

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Fontenele avalia que o governo de Evo Morales trouxe esperança para os bolivianos e conteve os saques internacionais às riquezas minerais do país.


Adital: Como avalia, então, o governo de Evo Morales? Quais avanços e desafios?
Fontenele: Excelente. O grande avanço do Governo Evo/Linera foi trazer a mudança da mentalidade dos miseráveis e pobres bolivianos, acenando-lhes com uma possibilidade de um futuro melhor. Um movimento de esperança por dias melhores, que a Bolívia nunca havia experimentado em sua história recente.
O Governo Evo/Linera conteve ainda os saques internacionais das riquezas minerais bolivianas, para que o país inteiro não se tornasse uma nova Potosí, como descreve Eduardo Galeano, em "As veias abertas da América Latina”. O Governo Evo/Linera fez a Bolívia se planejar, acreditar em si mesma na construção de um socialismo comunitário. A Bolívia jamais será a mesma depois deles dois.
Hoje, a Bolívia tem um dos crescimentos do PIB [Produto Interno Bruto] mais alto da América Latina e se planeja para se tornar fornecedora de energia para outros países da América do Sul, e também produzir muita carne para consumo externo e exportação. Antes, a Bolívia só era referência na América do Sul quando se falava em produção de cocaína, corrupção e miséria.
Como desafio, entendo que há uma questão óbvia para os bolivianos, que é a recuperação da saída territorial para o mar. Outro desafio, para além dos esforços de integração regional no Mersosul, entendo que seria engendrar um arranjo institucional, político e econômico, que resultasse numa "Confederação do Chaco” com o vizinho Paraguai.
Imagine a riqueza agropecuária paraguaia (gado, soja e suco de laranja) integrada com a riqueza mineral boliviana. Imagine a Bolívia enviando toneladas de gás natural, gás de cozinha ao Paraguai, por ramais em seu Gasoduto, e, em troca, embarcando toneladas de mercadorias nos portos paraguaios na mesma proporcionalidade. Ou seja, toneladas de mercadorias embarcadas por toneladas dos gases GNT [gás natural] e GLP [gás de cozinha].

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Entre os desafios do governo de Evo estariam a questão da saída ao mar e as negociações econômicas com o Paraguai.

Hoje, o gás boliviano chega ao Paraguai engarrafado e pelo caríssimo modal aeroviário. Sendo a Bolívia abundante em gás e vizinha ao Paraguai, uma garrafa de gás para cozinhar, um botijão de 13 quilos, vindo da Bolívia, custa ao trabalhador paraguaio G$ 100.000,00 (100 mil guaranis), ou seja, R$ 71,42 .Este preço pode ser barateado, pois grande parte do custo é frete, haja vista que o gás de cozinha trazido da Bolívia chega ao Paraguai por modal de transporte aeroviário e passa pela Argentina antes.
Hoje, no Paraguai, por uma questão gastronômica, cultural, toneladas de mangas são desperdiçadas. Será que essas frutas poderiam ser enviadas à Bolívia, em doação, para ajudar na nutrição popular? Será que isto é utopia? Talvez não. São as possibilidades, sonhos que a boa política concretiza, se for manejada em favor não somente das elites paraguaias e bolivianas, mas também para os "hambrientos” [famintos], os desfavorecidos, como estão fazendo Evo Morales Ayma e Alvaro Marcelo García Linera, na Bolívia de hoje.
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