2 DE AGOSTO DE 2012

Cansados de esperar pelo ministério da Justiça, indígenas retomam pacificamente vinte fazendas na região de Ilheus — e comemoram conquistas recentes, como criação das primeiras escolas onde se ensina em sua língua
Por Áurea Lopes, de Ilhéus (BA), no Brasil de Fato
Eles esperam há 512 anos para voltar a ter o que lhes é de direito por natureza. Eles esperam ter um lugar para morar em paz, uma terra para plantar o que comer e o que possa garantir sua subsistência, um espaço para preservar sua cultura e exercer suas crenças, como fazem todos os brasileiros. Eles esperam que cesse a perseguição que os expulsa de seus terrenos para dar lugar ao agronegócio, esperam que seja impedida a devastação de suas florestas e a poluição de seus rios, esperam que a Justiça coloque na cadeia os fazendeiros que mantêm seus parentes trabalhando em regime de escravidão, esperam coibição e punição a ameaças de morte, desaparecimentos de índios e estupros de índias.
Os Tupinambá de Olivença, em Ilhéus (BA), estão, decididamente, cansados de tanto esperar. De esperar, também, que situações de exploração e violação dos direitos fundamentais como essas, detalhadas no relatório de 6 mil páginas que compõe o processo de demarcação encaminhado pela Funai receba um parecer do Ministério da Justiça – o prazo se esgotou em junho.
Por isso, os Tupinambá decidiram iniciar sua autodemarcação, uma forma de luta para chamar a atenção das autoridades e fazer valer seus direitos. No dia 14 de julho, foi feita a primeira retomada de um território indígena próximo à aldeia Santana, área ainda dominada por coronéis do cacau, agropecuaristas e grandes plantadores de palmito só para exportação, além de monocultivos que estão destruindo a flora e fauna locais. Desde então, foram retomadas aproximadamente vinte fazendas, em ações totalmente pacíficas, muitas vezes com os ocupantes reconhecendo que estavam instalados em terras indígenas. Uma das recentes retomadas foi na aldeia Potyur, que já havia sido ocupada há dois anos, mas houve uma reintegração de posse a favor do fazendeiro. No entanto, ele não voltou a morar na fazenda, que ficou abandonada. “Eles tiram os índios com a reintegração e deixam tudo abandonado”, diz o cacique Acauã, um dos doze caciques do povo Tupinambá de Olivença. “Se é para fazer isso, a Justiça devia tratar igual as duas partes: sai fazendeiro, não entra índio, mas o Estado cuida da área, não deixa deteriorar”, acrescenta.
Criminalização
O cacique esclarece o caráter pacífico das ações, que vêm sendo criminalizadas pela mídia local: “Queremos viver tranquilos, resgatar nossa língua, acabar com o trabalho escravo de nossos parentes, acabar com a venda de bebida alcoólica para os índios, como forma de manipulação. Queremos ser tratados como cidadãos que somos. Não estamos pedindo o Brasil inteiro, sabemos que o país tem de andar. E outros povos também precisam de terra… os brancos, os quilombolas, os pequenos agricultores… nossa reivindicação é apenas o território nosso para sobreviver”. Acauã reforça ainda que, “se a Justiça não é capaz de impedir as agressões ao ambiente, o índio tem de preservar, porque o índio é a natureza”.
A maior parte das supostas propriedades, alerta um jovem e combativo indígena que participa das retomadas, não é habitada por fazendeiros, mas por meeiros ou por famílias obrigadas a trabalhar por salários que não pagam as despesas cobradas por moradia e alimentação. Um indígena que trabalha nessa situação conta: “Toda minha família trabalha na fazenda há muito tempo. Eu só tenho um ano e meio. O trabalho é muito pesado, pois a fazenda tem mais de 400 hectares, um extenso cultivo de cacau e nós só somos seis”. Juntando tudo que ele ganha no ano, chega a R$ 4 mil, mas desse dinheiro tem que dar 50% ao fazendeiro e tirar o necessário para comprar suas próprias ferramentas.
“Não temos nada contra essa gente, esses pequenos agricultores, somos todos do mesmo nível, nossa briga é com os exploradores”, diz essa jovem liderança. Outro jovem, também representativa liderança nas retomadas, explica o espírito da jornada: “A ideia é plantar, reflorestar e daqui poder tirar nosso sustento. Aqui vamos ter a mata, os pássaros, os peixes… muito diferente de viver na periferia, onde os parentes estão espalhados. Esse território sempre foi nosso, meus ancestrais sempre viveram aqui, meu bisavô, meu pai, eu, meus dois fi lhos temos de viver do que é nosso. Nossa luta não é contra os agricultores, nossa luta é contra o governo que não faz o papel dele, de demarcar a nossa terra. E a gente acaba sofrendo discriminação e preconceito”.
Ao contrário do noticiado em órgãos de imprensa local, que procura criminalizar os Tupinambás, as retomadas são pacíficas. “A gente vem, conversa, dá um tempo para o ocupante retirar tudo o que é seu, não queremos nada que não é nosso. Eles levam todos os móveis, pertences… podiam levar até a casa! Porque a gente não quer isso, a gente quer só a nossa terra”, desabafa o jovem de 28 anos.
Determinação
Aos 80 anos, com dez filhos e 30 netos, dona Nivalda, que já foi cacique Tupinambá, mostra o mesmo sofrimento, mas também a mesma garra de conquistar o que é seu. Ela participa das retomadas e sonha com um “lugar fixo” para fazer sua roça. Voluntária da Pastoral da Juventude, dona Nivalda já esteve com o presidente Lula e pediu a ele uma escola indígena para a aldeia – conseguiu. Ela lembra que sua avó foi a única a resistir à expulsão dos indígenas de Olivença. “Ela disse: daqui, só saio morta. Ela construía uma casa e eles derrubavam, construía, derrubavam… até que fizeram uma casa de tijolo por dentro da casa de palha. A construção era feita de noite, pra ninguém ver. Um belo dia, tiraram a palha e lá estava a casa, que ninguém ia derrubar. Foi lá que ela morreu”. A avó de dona Nivalda era obrigada a ir para o quintal para falar a língua nativa, que era proibida. Hoje, a filha de dona Nivalda é professora de língua indígena. “As coisas mudaram. Antes a gente tinha o direito e não sabia. Hoje a gente sabe. E luta por ele”, se orgulha.
(Colaboraram Kaluanã Tupinambá e Vilma Almendra)
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