sexta-feira, 3 de agosto de 2012

Ingresso da Venezuela pode criar novo Mercosul


  2 DE AGOSTO DE 2012

Cientistas políticos destacam conquista de segurança energética pelo bloco e possibilidade de novas ampliações —  para região andina e Caribe. Mas há quem prefira queixar-se de Chávez…
Por Fabiana Frayssinet, da Envolverde/IPS
(Título orginal: “Nova etapa geopolítica do Mercosul”)
A incorporação da Venezuela ao Mercosul, concretizada ontem (31/7, em Brasília, marca uma nova configuração geopolítica continental, além do fato de alguns a considerarem um avanço estratégico e econômico e outros um “retrocesso democrático”. O presidente do Uruguai, José Mujica, recebeu a entrada da Venezuela na qualidade de membro pleno do Mercosul como a escritura da “história do futuro” na qual os empresários terão que somar-se aos que “andam de camisa e chinelos”, isto é, os trabalhadores.
Por sua vez, a presidente da Argentina, Cristina Fernández, preferiu ilustrá-la com uma referência ao romance Cem Anos de Solidão, do colombiano Gabriel García Márquez. Em seu discurso na cúpula do Mercosul, criado em 1991 por Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai, Fernández comparou essa solidão de cem anos com a que enfrentaram os países sul-americanos nas últimas décadas, pelo surgimento de ditaduras militares e depois com a aplicação de políticas econômicas de cunho liberal, que deixaram “milhões de excluídos”.
“Hoje, representamos a força social de nossos povos que se juntam para mostrar que a solidão terminou”, acrescentou Fernández, ao reforçar na capital brasileira que os governos que integram o Mercosul agora são “parte de projetos coletivos e não individuais”. Por sua vez, Dilma Rousseff, como economista, preferiu fazer contas. “Considerando os quatro países mais ricos do mundo, Estados Unidos, China, Alemanha e Japão, o Mercosul somado agora é a quinta economia global”, afirmou na reunião da qual também participou Hugo Chávez, presidente do novo quinto membro.
Com a Venezuela, o bloco passa a contar com 270 milhões de habitantes, equivalentes a 70% da população da América do Sul, um produto interno bruto na casa dos US$ 3,3 trilhões, ou 83,2% do PIB do subcontinente, e um território de 12,8 milhões de quilômetros quadrados.
O Paraguai, outro membro fundador do Mercosul, está suspenso de todos os órgãos por decisão da cúpula de 29 de junho em Mendoza, na Argentina, devido à destituição na semana anterior do presidente Fernando Lugo em um julgamento político relâmpago no parlamento, que o substituiu pelo vice-presidente Federico Franco. Fernández, Rousseff e Mujica entenderam que os fatos apresentavam irregularidades que cabia aplicar a cláusula democrática do Mercosul até que seja recomposta a institucionalidade com as eleições do ano que vem.
Williams Gonçalves, especialista em relações internacionais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, afirmou que a Venezuela, como um dos maiores exportadores de petróleo do mundo, permitirá ao bloco aumentar sua capacidade de negociação no âmbito internacional. Já o economista Adhemar Mineiro, do Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Econômicos (Dieese), disse que devem ser reforçados projetos já contemplados, como o de um gasoduto cruzando a América do Sul, da Venezuela até a Patagônia. “Além disso, a entrada da Venezuela pode aproximar o Mercosul de outros produtores de energia da região, como a Bolívia, potência em gás natural, e Equador, também com abundantes reservas de hidrocarbonos”, afirmou à IPS.
Do ponto de vista alimentar, a Venezuela se beneficiará da integração com Argentina, Uruguai e Brasil, que são grandes produtores, acrescentou Mineiro. Também ressaltou que a adesão venezuelana, além de ser um interessante mercado para setores da indústria brasileira, tem seu maior valor no fato de praticamente todo o território sul-americano com litoral no Atlântico “passar a ser parte de um bloco geopolítico”, o que terá “implicações estratégicas”, militares, de infraestrutura, de transporte e de pesca, entre outras.
Desse território devem ser excluídos Colômbia, que limita ao norte com o Mar do Caribe, e as pequenas Guiana Francesa, Guiana e Suriname, com costas atlânticas. “Conforme se desenvolverem as relações entre o Mercosul e os países da costa atlântica da África, este novo bloco geopolítico poderá ajudar a alterar toda a situação do Atlântico Sul”, apontou Mineiro. O maior desafio está em “as elites conservadoras de Argentina, Brasil e Uruguai perceberem que o processo é de integração de Estados nacionais e não de governos”, ressaltou.
O historiador Marcelo Carreiro, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, destacou que o ingresso da Venezuela contribuirá para a “já notável independência energética da região”. Contudo, além dos benefícios econômicos pontuais, considera relevante uma possível abertura do bloco aos países caribenhos e centro-americanos, com “Caracas agindo como intermediário”. Segundo declarou Carreiro à IPS, “o bloco se dinamiza por meio de sua maior participação global, que pode ser fundamental para a paralisada experiência de integração regional”.
As diferenças entre as fontes consultadas surgem no ponto de vista político. Enquanto Gonçalves destaca que a Venezuela contribui para “dar mais consistência ideológica ao Mercosul, com maior importância nos aspectos sociais e não apenas comerciais”, outros analistas veem o perigo, precisamente, nessa possível agrupação de correntes de pensamento.
Marcos Azambuja, do Centro Brasileiro de Relações Internacionais, afirmou que embora a Venezuela “seja um sócio desejável” economicamente, não o será enquanto não superar seus problemas de “democracia imperfeita”, que definiu como a não alternância de partidos no poder. “O Mercosul quer relações com o mundo. Como podemos ver o Mercosul com a Venezuela negociando com a Europa?”, questionou, em conversa com a IPS.
Análise semelhante foi feita por Clóvis Brigagão, diretor do Centro de Estudos das Américas da Faculdade Cândido Mendes. A ele preocupa o que considera o início de “um perfil gradualmente bolivariano” do Mercosul, ao qual, com o empurrão da Venezuela, podem se incorporar Equador, Bolívia e Nicarágua. “Em termos práticos, o Mercosul se beneficia da entrada da Venezuela do ponto de vista geopolítico, com riquezas como o petróleo, mas no campo político é um retrocesso”, disse à IPS.
A união dos conceitos de economia e ideologia é uma mudança fundamental, disse João Pedro Stédile, dirigente do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra do Brasil e da rede internacional Via Campesina. Com a Venezuela, abrem-se as portas para que o Mercosul possa incluir também Equador, Bolívia e, mais tarde, Colômbia, Peru e Chile. E assim, finalmente, se transforme “em um mercado comum com a Unasul (União de Nações Sul-Americanas) como seu braço político”, afirmou à IPS.

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