segunda-feira, 13 de agosto de 2012

Michael Moore: São as armas; mas, não só as armas


  10 DE AGOSTO DE 2012

Os Estados Unidos são responsáveis por mais de 80% de todas as mortes por armas de fogo nos 23 países mais ricos do mundo combinados
Por Michael Moore, em seu blog. Tradução: Adital
Desde que Caim enlouqueceu e matou Abel sempre houve humanos que, por uma razão ou outra, perdem a cabeça temporária ou definitivamente e cometem atos de violência. Durante o primeiro século de nossa era, o imperador romano Tibério divertia-se a atirar as suas vítimas na ilha de Capri, no Mediterrâneo. Gilles de Rais, cavaleiro francês aliado de Joana D’Arc, na Idade Média, um dia, enlouqueceu e assassinou centenas de crianças. Apenas umas décadas depois, Vlad, o Empalador, na Transilvânia, tinha inúmeros modos horripilantes de acabar com as suas vítimas; o personagem de Drácula foi inspirado nele.
Em tempos modernos, em quase toda as nações há um psicopata ou dois que cometem homicídios em massa, por mais estritas que sejam as leis em matéria de armas: o demente supremacista branco, cujos atentados na Noruega cumpriram um ano neste domingo; o carniceiro do pátio escolar em Dunblane, Escócia; o assassino da Escola Politécnica de Montreal; o aniquilador em massa de Erfurt, Alemanha…; a lista parece interminável. E agora o atirador de Aurora. Sempre houve pessoas com pouco juízo e prudência e sempre haverá.
Porém, aqui reside a diferença entre o resto do mundo e nós: aqui acontecem DUAS Auroras a cada dia de cada ano! Pelo menos 24 norte-americanos morrem a cada dia (de 8 a 9 mil por ano) em mãos de gente armada, e essa cifra inclui os que perdem a vida em acidentes com armas de fogo ou os que cometem suicídio com uma. Se contássemos todos, a cifra multiplicar-se-ia para uns 25 mil.
Isso significa que os Estados Unidos são responsáveis por mais de 80% de todas as mortes por armas de fogo nos 23 países mais ricos do mundo combinados. Considerando que as pessoas desses países, como seres humanos, não são melhores ou piores do que qualquer um de nós, então, por que nós?
Tanto conservadores quanto liberais nos Estados Unidos operam com crenças firmes a respeito do “porquê” desse problema. E a razão pela qual nem uns e nem outros podem encontrar uma solução é porque, de facto, cada um tem a metade da razão.
A direita crê que os fundadores desta nação, por alguma sorte de decreto divino, lhes garantiram o direito absoluto a possuir tantas armas de fogo quanto desejem. E recordam-nos sem cessar que uma arma não dispara sozinha; que “não são as armas, mas quem mata são as pessoas”.
Claro que sabem que estão a cometer uma desonestidade intelectual (se é que posso usar essa palavra) ao sustentar tal coisa acerca da Segunda Emenda, porque sabem que as pessoas que escreveram a Constituição unicamente queriam assegurar-se de que se pudesse convocar com rapidez uma milícia entre fazendeiros e comerciantes, no caso de os britânicos decidirem regressar e semear um pouco de caos.
Porém, têm a metade da razão quando afirmam que “as armas não matam: os norte-americanos matam!”. Porque somos os únicos no primeiro mundo que cometemos crimes em massa. E escutamos norte-americanos de todas as condições aduzir todo tipo de razões para não terem de lidar com o que está por trás de todas essas matanças e atos de violência.
Uns culpam os filmes e os videojogos violentos. Na última vez que revi este assunto, verifiquei que os videojogos do Japão são mais violentos do que os nossos e, no entanto, menos de 20 pessoas ao ano morrem por armas de fogo naquele país; e em 2006 o total foi de duas pessoas! Outros dirão que o número de lares destroçados é o que causa tantas mortes. Detesto dar-lhes essa notícia; porém, na Grã-Bretanha há quase tantos lares desfeitos, com um só dos pais assumindo o cuidado dos filhos quanto nos EUA; e, no entanto, em geral, os crimes cometidos lá com armas de fogo são menos de 40 ao ano.
Pessoas como eu dirão que tudo isso é resultado de ter uma história e uma cultura de homens armados, “índios e vaqueiros”, “dispara agora e pergunta depois”. E se bem é certo que o genocídio de indígenas americanos assentou um modelo bastante feio de fundar uma nação, parece-me mais seguro dizer que não somos os únicos com um passado violento ou uma marca genocida.
Olá, Alemanha! Falo de ti e da tua história, desde os hunos até os nazi, todos os que amavam uma boa carnificina (tal qual os japoneses e os britânicos, que dominaram o mundo por centenas de anos, coisa que não conseguiram plantando margaridas). E, no entanto, na Alemanha, nação de 80 milhões de habitantes, são cometidos apenas 200 assassinatos com armas de fogo ao ano.
Assim que esses países (e muitos outros) são iguais a nós, exceto que aqui mais pessoas acreditam em Deus e vão à Igreja mais do que em qualquer outra nação ocidental.
Os meus compatriotas liberais dirão que se tivéssemos menos armas de fogo haveria menos mortes por essa causa. E, em termos matemáticos, seria certo. Se temos menos arsénico na reserva de água, matará menos gente. Menos de qualquer coisa má – calorias, tabaco, reality shows – significará menos mortes. E se tivéssemos leis estritas em matéria de armas, que proibissem as armas automáticas e semiautomáticas e proibissem a venda de grandes carregadores capazes de portar milhões de balas, atiradores como o de Aurora não poderiam matar tantas pessoas em pouquíssimos minutos.
Porém, também nisso há um problema. Há um montão de armas no Canadá (a maioria espingardas de caça) e, no entanto, a conta de homicídios é de uns 200 ao ano. De facto, pela sua proximidade, a cultura canadiana é muito similar à nossa: as crianças têm os mesmos videojogos, veem os mesmos filmes e programas de TV; mas, no entanto, não crescem com o desejo de matar uns aos outros. A Suíça ocupa o terceiro lugar mundial em posse de armas por pessoa; porém, a sua taxa de criminalidade é baixa. Então, por que nós? Formulei essa pergunta há uma década no meu filme ‘Bowling for Columbine’, e esta semana tive pouco que dizer porque me parecia ter dito há dez anos o que tinha a dizer; e acho que não fez muito efeito; exceto ser uma espécie de bola de cristal em forma de filme.
Naquela época, disse algo que repetirei agora:
1. Nós norte-americanos somos incrivelmente bons para matar. Acreditamos em matar como forma de conseguir os nossos objetivos. Três quartos dos nossos Estados executam criminosos, apesar de os Estados que têm as taxas mais baixas de homicídios serem, em geral, os que não aplicam a pena de morte.
A nossa tendência para matar não é somente histórica (o assassinato de índios, de escravos e de uns e outros na guerra “civil”): é a nossa forma atual de resolver qualquer coisa que nos inspira medo. É a invasão como política exterior. Sim, lá estão Iraque e Afeganistão; porém, somos invasores desde que “conquistamos o oeste selvagem” e agora estamos tão enganchados que já não sabemos o que invadir (Bin Laden não se escondia no Afeganistão, mas no Paquistão), nem porque invadir (Saddam não tinha armas de destruição massiva, nem nada a ver com o 11de setembro). Enviamos as nossas classes pobres para fazer matanças, e os que não têm um ser querido lá, não perdem um só minuto de um só dia a pensar nessa carnificina. E agora, enviamos aviões sem pilotos para matar (drones), aviões controlados por homens sem rosto num luxuoso estúdio com ar condicionado num subúrbio de Las Vegas. É a loucura!
2. Somos um povo que se assusta com facilidade e é facilmente manipulável pelo medo. De que temos tanto medo, que necessitamos ter 300 milhões de armas de fogo em nossas casas? Quem vai magoar? Por que a maior parte dessas armas se encontra nas casas de brancos, nos subúrbios ou no campo? Talvez, se resolvêssemos o nosso problema racial e o nosso problema de pobreza (uma vez mais, somos o número um com maior número de pobres no mundo industrializado) haveria menos pessoas frustradas, atemorizadas e encolerizadas estendendo a mão para pegar a arma que guardam na gaveta. Talvez cuidássemos mais uns dos outros (aqui vemos um bom exemplo disso).
Isto é o que penso sobre Aurora e sobre o violento país do qual sou cidadão. Como mencionei, disse tudo nesse filme e se quiserem, podem assisti-lo e partilhá-lo sem custo com os demais. E o que nos faz falta, amigos meus, é valor e determinação. Se vocês estão prontos, eu também.
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