terça-feira, 14 de julho de 2015

Papa pede perdão aos indígenas sul-americanos pelos ‘graves pecados’ cometidos pela Igreja



Cristiano Morsolin
Adital


O presidente da Bolívia, Evo Morales, advertiu durante o encerramento do II Encontro Mundial dos Movimentos Sociais e Populares, realizado em Santa Cruz de la Sierra, no último dia 09 de julho, que, enquanto existir capitalismo no mundo, a luta das organizações sociais "vai continuar” porque, na sua opinião, um discurso não é suficiente para garantir a libertação democrática dos povos.
O Primeiro Mandatário, que recebeu juntamente com o Papa Francisco o "Documento de Santa Cruz”, afirmou que a luta pela libertação democrática necessita do "acompanhamento” de una libertação econômica, para que perdure no tempo.

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Papa Francisco e Evo Morales no encerramento do II Encontro Mundial dos Movimentos Populares, em Santa Cruz de la Sierra.


Os 1.500 delegados de movimentos sociais de todo o mundo ressaltaram que "as organizações sociais reunidas no Segundo Encontro Mundial de Movimentos Populares, em Santa Cruz de la Sierra, Bolívia, durante os dias 07, 08 e 09 de julho de 2015, coincidiram com o Papa Francisco em que a problemática social e ambiental emerge como duas faces da mesma moeda. Um sistema que não pode oferecer terra, teto e trabalho para todos, que socava a paz entre as pessoas e ameaça a própria subsistência da Mãe Terra não pode seguir regindo o destino do planeta.
"Devemos superar um modelo social, político, econômico e cultural em que o mercado e o dinheiro se converteram no eixo regulador das relações humanas em todos os níveis. Nosso grito, o dos mais esquecidos e marginalizados, obriga a que os poderosos compreendam que, assim, não se pode seguir. Os pobres do mundo se levantam contra a exclusão social que sofrem dia a dia”, assinalam as organizações no documento. (1)
O primeiro indígena presidente, Evo Morales, respondeu que "o pecado que tem o ser humano é o capitalismo, enquanto exista o capitalismo e o imperialismo, a luta vai continuar, por mais que hajam presidentes ou dirigentes em todo o mundo. O povo vive de salário e do movimento econômico, um discurso não é suficiente para garantir a libertação democrática, uma libertação política precisa ser acompanhada por uma libertação económica”.

Em sua avaliação, atualmente, existe uma sorte de "anarquia financeira” que tenta invadir alguns países do mundo, com o objetivo de potencializar o capitalismo e o imperialismo.
"Frente às agressões políticas e militares, às invasões, frente a isso temos a obrigação de (pensar) como continuar fortalecendo nossas forças sociais”, fundamentou. O presidente boliviano disse que, para garantir uma revolução democrática, é necessário adotar medidas econômicas que garantam a segurança financeira das pessoas, porque "o povo vive de salário”. "Por cima de qualquer norma estão as necessidades sociais, o povo não pode estar submetido às normas”, considerou. Ratificou que, para evitar as invasões do capitalismo, é necessário concretizar uma profunda reforma nas Nações Unidas, para eliminar o Conselho de Segurança, que só justifica intervenções nos países. "Na Bolívia, o imperio tenta cooptar dirigentes e tratar de nos dividir, para nos dominar politicamente e nos roubar económicamente”, advertiu. (2)
Em várias partes do seu discurso, o presidente foi ovacionado pela plateia. Morales falou por quase meia hora, durante a qual o Pontífice o escutou com atenção. Antes de criticar o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial, o presidente Morales mostrou as chaves para libertar-se dos organismos financeiros internacionais, que mais do que benefícios, trazem danos para os países, com suas rendas interesseiras. "Resumo o nosso modelo econômico, social e político: refundação, nacionalização e redistribuição da riqueza”, disse.
Destacou o aporte do vice-presidente Álvaro García Linera, a quem chamou de intelectual sem medo, comprometido com as causas sociais, e recordou que, a seu lado, quando ganharam as primeiras eleições, decidiram fazer seu próprio programa de governo, para beneficiar o povo.
Lembrou que, no passado, o Movimento Ao Socialismo (MAS) decidiu passar da luta sindical para a luta eleitoral, e referendou que os resultados estão à vista; por enquanto, no tema econômico, "graças à nacionalização dos recursos naturais, como o gás, por exemplo, a renda petroleira passou de 300 milhões para 6 bilhões de dólares”.
Ao final, o mandatário teve tempo para falar sobre a crisis econômica em que está subsumida a Grécia. "O Fundo Monetário está causando prejuízo, escutei sobre a Grécia, querem mais dívida para pagar dívida, não para a solução da crise. Temos a obrigação de defender esse povo, é o início de uma rebelião na Europa”, disse Morales, reiterando a importância de proteger o pueblo grego dos organismos financeiros.

O futuro está nas mãos dos pobres

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Em um discurso emocionante, Francisco respaldou as principais demandas dos movimentos sociais: Terra, Teto e Trabalho.



Foi o seu discurso mais forte, mais reformista. O mais extenso e autocrítico. O Papa Francisco chegou ao encerramento do II Encontro Mundial de Movimentos Populares. (3)
Agradeceu os representantes dos movimentos populares por terem se reunido com ele em Roma; lhes disse que, desde então, os tem em seu coração e em suas orações, elogiou que se reunissem para debater "melhores formas para superar as injustiças dos excluídos do mundo” e deu graças ao presidente Evo Morales por "respaldar, decididamente, esse encontro”.
Daí em diente, em quase uma hora de discurso, respaldou as demandas do Encontro: terra, teto e trabalho (os três T, como ele as denominou). "São direitos sagrados e vale a pena lutar por eles (…), que o clamor dos excluídos seja escutado em toda a América Latina e em toda a Terra”, disse.
E questionou: "reconhecemos que as coisas não andam bem, em um mundo onde há tantos camponeses sem terra, tantas famílias sem teto, tantos trabalhadores sem direitos, tantas pessoas feridas em sua dignidade? (…) Reconhecemos que as coisas não andam bem quando o solo, a água, o ar e todos os seres da criação estão sob permanente ameaça? (…) Então, digamos sem medo: necessitamos e queremos uma mudança”.

"Semeadores de mudança”
Tais fueron, adiante, os eixos da dissertação de Francisco: a necessidade de uma mudança, de uma transformação e a vinculação dessa mudança à proteção da Mãe Terra, da Irmã Natureza, como ele a chama.
Sempre coerente com o pensamento expresso na encíclica Laudato Si’ – à qual se referiu várias vezes –, o Sumo Pontífice disse que já não é sustentável um mundo onde a premissa seja o ganho a qualquer custo. "Queremos uma mudança, uma mudança real, uma mudança de estruturas. Esse sistema já não aguenta, não o aguentam os camponeses, não o aguentam os trabalhadores, não o aguentam as comunidades, não o aguentam os povos… E tampouco o aguenta a Terra, a irmã Mãe Terra, como dizia São Francisco”.

O Papa chamou os "poetas sociais” e "semeadores de mudança” – como se referiu aos movimentos e organizações sociais do mundo – a encontrarem respostas globais para os problemas locais, a irem contra a globalização da exclusão e da indiferença, em busca de uma "globalização da esperança”, e a assumir que a mudança que deve ser perseguida nasce do coração e que não é uma mudança "com donos”. Por isso, disse, "gostei quando escutei sobre o ‘processo de mudança’”.
Porém, deu um apelido a essa mudança, chamando-a de "positiva”. "É a mudança concebido não como algo que um dia chegará porque se impôs tal ou qual opção política ou porque se instaurou tal ou qual estrutura social. Sabemos, dolorosamente, que uma mudança de estruturas, que não vem acompanhada de uma sincera conversão das atitudes e do coração, termina, mais dia menos dia, por burocratizar-se, corromper-se e sucumbir. Por isso gosto tanto da imagem do processo, em que a paixão por semear, por regar serenamente o que outros verão florescer substitui a ansiedade por ocupar todos os espaços de poder disponíveis e ver resultados imediatos. Cada um de nós não é mais do que parte de um todo complexo e diverso, interagindo no tempo: povos que lutam por uma significação, por um destino, por viver com dignidade, por ‘viver bem’”. argumentou.
"O futuro do mundo está nas mãos dos pobres, dos povos”, ressaltou.
A mudança é fundamental, mas como se alcança essa trascendental transformação? Francisco eludiu dar uma receita, mas disse que há três tarefas pendentes.
A primeira é colocar a economia a serviço dos povos, o que quer dizer que deve se repudiar uma globalização que descarta as pessoas porque não respondem aos parâmetros mercantilistas.
A segunda tarefa consiste em unir os povos no caminho da paz e da justiça, o que equivale a que as coletividades sejam artífices do seu próprio destino.
Finalmente, a terceira tarefa, que, segundo o Papa, é a mais importante, funda-se em defender a Mãe Terra, a casa comum que, hoje, é saqueada e devastada pela globalização fundamentada no dinheiro.
Em seu emotivo discurso, o Papa também pediu perdão aos povos indígenas pelos graves pecados da Igreja contra os povos originários. "Quero dizer, quero ser muito claro, como foi São João Paulo II: peço, humildemente, perdão não só pelas ofensas da própria Igreja, mas pelos crimes contra os povos originários, durante a chamada conquista da América”.
Um fantasma percorre a América
O jornalista político argentino Luis Bruschtein (4) considera que o discurso do Papa Francisco ante os movimientos sociais reunidos em Santa Cruz de la Sierra teve uma ressonância inédita e até certa conotação surrealista porque brusca. Um papa católico, juntamente com Evo Morales e líderes operários e campesinos, em um pequeno e expoliado país da América Latina. Mais além da origen latino-americana desse papa, a escolha da cena e das palavras que foram procunciadas implicam uma decisão política que tem profundas implicações no cenário internacional. É um papa que optou por um papel terreno, como foi João Paulo II, mas em um registro político muito diferente.
"Vocês, os mais humildes, os explorados, os pobres e excluídos, podem e fazem muito. Atrevo-me a dizer que o futuro da humanidade está, em grande medida, em suas mãos.” Parece a apropriação de uma frase proveniente de outra cultura política. O Papa a formula rodeado de bispos latino-americanos, que foram designados por seus antecessores e que, em boa medida, têm expressado todo o contrário. Esse corpo de bispos não tem a mesma prática e, seguramente, vários deles se sentirão incomodados.
Palavras como "colonialismo” ou conceitos como "Pátria Grande”, formulados nesse contexto, situam o Vaticano em um registro histórico diferente porque, até há alguns poucos anos, a ideia de colonialismo estava associada à Igreja Católica, também parte da estrutura de poder de senhores feudais, em épocas coloniais e de fazendeiros e oligarquias nas posteriores. A Igreja fez parte institucional e simbólica da estrutura de poder das classes dominantes latino-americanas, com exceção de alguns bispos, muitos dos quais foram expulsos, durante os dois papados anteriores ao de Francisco, por terem dito a metade do que disse o Papa na Bolívia.
A maioria dos bispos latino-americanos, sobretudo os episcopados de cada país, não está em sintonia com esses conteúdos. Representam um fator às vezes tão conservador ou reacionário, como os que critica o Papa. Nos países latino-americanos, onde há processos populares com discursos em consonância com o papal, vários episcopados têm se convertido em uma parte da oposição, juntamente com os meios concentrados de comunicação. Houve momentos em que, na Argentina, sob a condução do próprio Bergoglio [Jorge Bergoglio, o Papa Francisco], também funcionaram dessa maneira. O discurso do Papa Francisco, que será um marco na Igreja Católica, não aparece em linha com esses antecedentes. Se esse forte conteúdo baixa até a linha dos bispos, a grande maquinaria simbólica e concreta da Igreja terá producido uma guinada transcendental, com uma profunda projeção no cenário mundial.

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Papa Francisco, quando era arcebispo de Buenos Aires, com a presidenta argentina, Cristina Fernández.


Balanço do II Encontro Mundial

Para interpretar a complexidade do significado profundo do II Encontro Mundial dos Movimentos Sociais e Populares, vale a pena mencionar a avaliação do analista político espanhol Manuel Martínez.
"O II Encontro Mundial de Movimentos Populares (EMMP), realizado em Santa Cruz de la Sierra, Bolívia, entre a terça-feira, 07, e a quinta-feira, 09, foi de uma grande importância para as organizações do continente e do mundo por vários motivos”, afirma Martínez.
Em primeiro lugar, a destacada articulação entre correntes do movimento popular latino-americano, que permitiu a realização desse encontro mundial. O EMMP foi convocado pela Central Operária Boliviana (COB) e pela Coordenadoria Nacional pela Mudança (Conalcam, por sua sigla em espanhol), mas, ademais, propôs a organização a Via Campesina do Brasil e a Confederação de Trabalhadores da Economia Popular (CTEP), da Argentina. Já a partir dessa base tem uma característica única. É um encontro de organizações, movimentos sociais, organizações sindicais e populares dos países latino-americanos que também foi aberto a outros países do mundo.
O EMMP debateu durante três dias problemas fundamentais que são comuns na América Latina. Problemas que tem a ver com as perspectivas de integração e reivindicações compartilhadas como os três eixos da convocatória: Teto, Terra e Trabalho.
Para destacar também é a participação de movimentos sociales e populares em países onde não existe, nesse momento, uma política de transformação, mas uma política conservadora. Nesse sentido a presença de organizações do Peru ou do Chile, por exemplo, tem uma importância transcendental. Estes são países que estão no bloco da Aliança do Pacífico e que, de uma ou outra maneira, seus governos polarizam ou têm uma tensão com a Venezuela, Equador, Bolívia ou, inclusive, a Argentina.
As conclusões do EMMP foram entregues ao presidente da Bolívia, Evo Morales, e também ao Papa Francisco durante o encerramento.
Nelas se anuncia o problema do acesso à terra e o rechaço ao despejo das comunidades originárias como uma questão fundamental. Também se inclui o combate ao trabalho precário – o que é muito conhecido para a delegação argentina, que tem tido uma representação muito importante através de companheiros e companheiras da CTEP e do Movimento de Trabalhadores Excluidos (MTE) – e a luta por direitos trabalhistas. E questões como o acesso à moradia digna. Ou seja, são propostas gerais que estão na base da articulação internacional desses movimentos sociais.
Ademais, houve confluências importantes não só nas questões vinculadas às lutas setoriais, mas em termos políticos gerais. O documento de síntese propõe, somando o já mencionado, o "impulso e o aprofundamento dos processos de mudança social”, a "harmonia com a Mãe Terra”, a luta contra a discriminação e pela paz entre os povos, a "promoção da liberdade de expressão” e o desenvolvimento de meios alternativos, comunitários e populares, "colocar a ciência e a tecnologia a serviço dos povos”, e o rechaço ao consumismo.
Entre Francisco e os movimentos populares, seguramente, há uma convergência nesses temas e sua presença é um fato sobre o qual é necessário ressaltar várias questões.
Não é correto afirmar que nem a Igreja Católica nem o Papa tenham posições de esquerda. Mas sim que têm uma sensibilidade diferente, que lhes permite, efetivamente, acompanharem as mudanças e a realidade dessas mudanças, levando em conta ao mesmo tempo a política, o projeto de recuperar os fiéis cristãos que, desde os anos 1970 até hoje, descresceram bastante nessas terras.
Para o governo de Evo Morales – e os do restante da região –, sem dúvida, isso representa uma contradição. A Igreja foi parte fundamental da invasão europeia aos povos latino-americanos. Ainda com as desculpas que ofereceu Francisco ante os movimentos populares, a Igreja durante a conquista justificou tudo o que fez nessa região do mundo, com as armas, com o saque.
Isto não significa que, neste século XXI, essa mesma Igreja não tenha a possibilidade de uma realozação, que signifique um discurso e um posicionamento completamente distintos ao que teve durante séculos. Isto é o que estão experimentando os povos da América Latina.
Também vale esclarecer que as posições de Francisco não expressam, como alguns supõem ou analisam, uma expressão da Teologia da Libertação. A Teologia da Libertação foi um movimento eclesiástico que surgiu de baixo, combinada com a radicalização política dos anos 1960 e 1970. Surgiu contrapondo-se à política da hierarquia eclesiástica.
Neste caso, é diferente. É a própria hierarquia eclesiástica, através do seu máximo representante, que é o Papa – ou melhor, é o Papa – o que promove uma política de diálogo e integração dos povos e de aproximação com o popular e os movimentos sociais. É outro momento histórico diferente e uma posição diferente da que tem, hoje, a Igreja.
"Nesta política, que busca uma relação com os movimentos e não os confronta diretamente, as tensões van continuar ocorrendo, sempre. No caso concreto dos movimentos sociais, das reivindicações da economia popular, dos camponeses sem terra, etc., o assunto é até fácil”, conclui Manuel Martínez. (5)

NOTAS

(1) http://movimientospopulares.org/sale-la-carta-de-santa-cruz/
(2) http://www.cambio.bo/?q=morales-mientras-exista-el-capitalismo-la-lucha-va-seguir
(3) http://www.paginasiete.bo/sociedad/2015/7/10/futuro-esta-manos-pobres-62743.html
(4) http://www.pagina12.com.ar/diario/elpais/1-276809-2015-07-10.html
(5) http://notas.org.ar/2015/07/10/tierra-techo-trabajo-movimientos-populares-papa-francisco-bolivia/

*Cristiano Morsolin, pesquisador e trabalhador social italiano radicado na América Latina desde 2001, com experiências no Equador, Colômbia, Peru, Bolívia, Paraguai, Brasil. Autor de vários livros, colabora com a Universidade do Externado da Colômbia, Universidade do Rosário de Bogotá, Universidade Politécnica Salesiana de Quito. Co-fundador do Observatório sobre América Latina SELVAS (Milão), especialista na análise da dívida social e da dívida externa na América Latina, através do trabalho com a Fundação "Giustizia e Solidarieta FGS” (Roma).

Blog: https://diversidadenmovimiento.wordpress.com/

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