quarta-feira, 2 de setembro de 2015

A obesidade é uma doença incurável. Por que punir o doente?


Comer em excesso pode ser mais viciante que o crack. Em vez de culpar os indivíduos, é preciso responsabilizar a indústria alimentícia e a publicidade.


George Monbiot, no The Guardian
reprodução
Seria o hábito de comer em excesso mais viciante do que crack? É difícil comparar taxas de dependência, ou produzir uma definição clara e válida para todas as substâncias e comportamentos. Mas considere este contraste brutal: entre as pessoas que usam crack, 10% a 20% se tornam viciadas; segundo  estudo realizado com 176 mil pessoas obesas ao longo de nove anos, 98,3% dos homens e 97,8% das mulheres não conseguiram voltar a um peso saudável. Quando se começa a comer descontroladamente, parece quase impossível parar.
 
Um artigo publicado na revista Neuroscience & Biobehavioral Reviews sugeriu que "vício em comida" é uma descrição menos precisa dessa condição que "vício em comer". Não há evidências de que as pessoas com tendência a comer demais se tornem dependentes de um único ingrediente; ao contrário, tendem a buscar uma variedade de alimentos altamente palatáveis e com alta densidade calórica, como tantos que hoje nos cercam.
 
A ativação de sistemas de recompensa no cérebro e a perda do controle de impulsos são semelhantes aos que ocorrem na dependência de drogas. Mas o vício em comer parece mais potente. Como observa o artigo, em experimentos de laboratório, a maioria dos ratos "prefere ser recompensada por um doce que por cocaína".
 
Como explica um artigo publicado na Lancet este ano, uma vez que um indíviduo se torna obeso, mudanças biológicas o aprisionam nesta condição. As células de gordura proliferam. O cérebro se habitua aos sinais de dopamina (o caminho da recompensa), levando-o a aumentar o consumo.
 
Se você tenta perder peso, o corpo percebe-se em privação, e adaptações poderosas (como um aumento da eficiência metabólica) tentar jogá-lo de volta ao estado anterior. As pessoas que conseguem, contra todas as probabilidades, voltar a um peso normal, devem consumir menos 300 calorias por dia do que quem nunca foi obeso, se não quiserem ganhar peso novamente. "Uma vez estabelecida a obesidade (...) o peso corporal parece tornar-se um carimbo biológico". Quanto mais peso se perde, mais forte é a pressão biológica para voltar à forma excessiva anterior.
 
Os pesquisadores acreditam que "estas adaptações biológicas irão, muitas vezes, persistir indefinidamente": em outras palavras, para permanecer magro, quem já é obeso precisará fazer uma dieta rigorosa para o resto da vida. O melhor que se pode esperar não é uma cura através de dieta, mas uma "obesidade em remissão". O único tratamento eficaz, de longo prazo, para a obesidade atualmente disponível, segundo o artigo, é a cirurgia bariátrica. Que pode causar, no entanto, uma série de complicações.
 
Sei que esta afirmação será mal recebida. Também odeio a idéia de que nem todas as circunstâncias podem ser mudadas pelas pessoas. Mas a verdade terrível é que, exceto por meio de cirurgia, para a grande maioria das pessoas que sofrem de obesidade, trata-se de uma doença incurável. Em um aspecto, assemelha-se ao câncer: as mudanças no estilo de vida que poderiam ter prevenido a doença dificilmente servirão como cura.
 
A gordofobia é pior do que se imagina: outro artigo apontou que, quanto mais preocupadas com o peso, mais as pessoas tendem a exagerar na comida. O estresse induzido pela preocupação com o peso também dispara o desejo de buscar o conforto na comida. Como a jornalista do The Guardian Sarah Boseley aponta em seu livro The Shape we’re in (sem tradução em português), "a indústria da dieta... é uma das maiores fraudes dos dias de hoje". Para os obesos, a balança terminará virando o jogo depois de vitórias temporárias contra ela.
 
Pessoas com sobrepeso (em outras palavras, que têm um índice de massa corporal de 25 a 30) parecem não sofrer das mesmas adaptações bioquímicas: sua compleição física não é um "carimbo". Para estes, alterações de dieta e exercícios físicos serão, provavelmente, eficazes. Mas não se deve dar falsas esperanças às pessoas obesas.
 
A tarefa crucial é cuidar das crianças antes que elas sucumbam a esse vício. Além de ajudar e aconselhar os pais, isso certamente requer uma grande mudança no que os cientistas chamam de "ambiente obesogênico" (alimentos e bebidas de alta concentração calórica, bem como a propaganda e as embalagens que os tornam mais atraentes). A menos que as crianças sejam afastadas dos excessos desde cedo, estarão suscetíveis a esta prisão que pode durar a vida toda.
 
Poderíamos esperar que esse conhecimento levasse a uma maior aceitação, empatia e ao fim da estigmatização. Que nada. Há alguns dias, logo após a publicação dos dados mencionados acima, o primeiro-ministro David Cameron lançou um relatório que pode levar ao corte de benefícios sociais às pessoas obesas que se recusarem a "tratar" sua condição.
 
Realizado por Carol Black, o trabalho antecipa suas conclusões: em oito ocasiões, descreve a obesidade como "tratável". Mesmo? Como? Ele irá analisar a possibilidade "de vincular o direito a benefícios à adesão a um tratamento adequado". Será que Cameron e Black estão propondo que os requerentes de benefícios sejam forçados a se submeter a uma cirurgia? Ou serão forçados a seguir dietas punitivas e inúteis? Estas propostas me parecem jogar a culpa naqueles que sofrem da doença – enquanto poupam os fabricantes e anunciantes de alimentos.
 
Por que temos uma epidemia de obesidade? Terá a composição da espécie humana mudado? Terá havido um colapso geral da força de vontade? Não. Evidências apontam para alimentos com alto teor de gordura e açúcar, que aniquilam a capacidade de controlar impulsos de crianças e jovens adultos, embalados e promovidos para criar a impressão de serem divertidos e de tornarem a vida mais legal. Nos pontos de venda, são expostos pensando das crianças: próximos às caixas registadoras, por exemplo, e ao alcance de suas mãozinhas.
 
A doença vai continuar a devastar a população (e a soterrar lentamente o sistema de saúde) até que estas circunstâncias mudem. Mas a única contribuição do governo foi derrubar controles obrigatórios, substituindo-os por um “acordo de responsabilidade” voluntário – e, portanto, inútil – com fabricantes e varejistas.
 
O acordo lhes permite escolher se querem ou não adotar um sistema de cores, a forma mais eficaz de informar as pessoas sobre o impacto provável do que comem. Muitas empresas, é claro, optaram por não adotar o sistema. Na prática, no que diz respeito ao conteúdo nutricional, a indústria alimentícia não está regulamentada.
 
A indústria e o governo vão resistir às soluções óbvias até quando puderem. Mais cedo ou mais tarde, terá que haver mudanças, com restrições à publicidade, patrocínios, exposição e acessibilidade semelhantes àquelas impostas aos comerciantes de tabaco. Um dia, após milhões de mortes desnecessárias, será ilegal anunciar alimentos ou bebidas que mereçam sinal vermelho. Estes serão vendidos em embalagens discretas, com advertências de saúde, e colocados nas prateleiras mais altas.
 
Soa como uma medida draconiana? Lembre-se que a obesidade atinge um quarto da população adulta, taxa que está aumentando rapidamente. A obesidade causa uma série de desdobramentos horríveis: uma delas – a diabetes – é responsável por um sexto das internações e consome 10% do orçamento de saúde da Inglaterra. Em que mundo isto é aceitável? Se o tabagismo exige uma intervenção enérgica, por que não o vício em comer?
 
Esta é a escolha que enfrentamos: reconhecer que o único meio humano e eficaz de abordar a epidemia da obesidade é evitar que mais pessoas sejam fisgadas pelo vício, restringindo a ação dos aliciadores – ou insistir no caminho de gordofobia, humilhação e tratamento compulsório, cujo único resultado provável é a infelicidade.
 
Agora se pergunte novamente: qual das opções parece draconiana?
 
 
Tradução de Clarisse Meireles

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