sábado, 5 de setembro de 2015

MONITOR DA IMPRENSA > CILADAS JORNALÍSTICAS A estratégia da precisão falaciosa


Por Afonso Caramano em 04/09/2015 na edição 866
O recorte quase cirúrgico da reportagem exibida pelo telejornal Bom Dia, São Paulo em 28/08/2015 [http://goo.gl/ZIW2Nt], sobre o cancelamento de cirurgias de catarata por falta de verbas no Hospital das Clínicas de São Paulo, não remete, propriamente, à precisão jornalística – não que tenha sido malfeita e leviana ou que não tenha seguido os pressupostos mínimos de uma boa reportagem.
Tratada como denúncia gravíssima, segundo o apresentador, diz tudo o que é necessário, apresentando os fatos e depoimentos (colhidos pelo produtor Caio Leme) de pacientes, médicos e funcionários do H.C., tomando o cuidado de preservá-los (com os conhecidos recursos de distorção de imagem e voz), constatando a falta de kit para a referida cirurgia, e o transtorno daí decorrente para pacientes e seus familiares.
O contraponto foi dado, como costumeiro, em nota protocolar pela instituição, que alegou se tratar de um problema pontual que levou a uma interrupção de quatro dias em tal procedimento, e que a situação já havia sido regularizada.
Tornou-se uma tendência em reportagens dessa natureza o enquadramento da notícia sob a perspectiva da crise ou como um reflexo desta, apontando-se, preferencialmente, os administradores públicos (governos) como os responsáveis pelo que é reportado, traduzido em má gestão ou pura incompetência, principalmente se da esfera federal. Não foi o caso, especificamente, dessa notícia, embora se pudesse subentender como consequência da conjuntura atual, mais uma mazela a penalizar a população.
Amarras ideológicas
Essa prática (jornalística) representaria a garantia de um suposto viés crítico com a impressão de isenção e de prestação de serviço público. Entretanto, tem-se revelado um desvio devido ao seu emprego seletivo, pois que não utiliza da mesma ênfase em todas as reportagens, a exemplo da referida, que se esqueceu de mencionar que o H.C. é vinculado à Universidade de São Paulo e, portanto, ao governo (tucano) estadual.
A precisão do recorte jornalístico neste caso adquire um aspecto maniqueísta e de silenciamento (como se o telespectador, já acostumado com tais matérias, não pudesse perceber essa estratégia), abrindo uma fissura informativa, uma vez que não esclarece a ordem de tais vínculos ou, tampouco, se se trata de uma falha eventual da gestão do hospital, de um corte do governo paulista nos repasses de verbas ou se resultado de uma insuficiência perene.
O mínimo que se espera é um tratamento igualitário das notícias, que se mostrem os fatos, indiquem os responsáveis, apontem as causas e porventura soluções, ou ao menos uma análise que vá além dos comunicados e das notas institucionais.
A omissão ou escamoteamento de quaisquer informações nesse sentido torna evidente a opção não propriamente jornalística do meio que a produz – e no contexto noticioso, o que seria visto como uma prestação de serviço público, não consegue romper as próprias amarras ideológicas daquilo que representa.
Uma estratégia conveniente a interesses
Também deveria causar certo estranhamento outra prática bastante comum em reportagens que envolvem denúncias ou algum risco para as testemunhas – o já citado recurso da distorção de imagem e voz – cuidado justificado diante da necessidade da preservação das fontes ou da integridade dos denunciantes, mas que nesse caso é passível de uma leitura reveladora das circunstâncias pouco propícias ou democráticas daqueles que vêm a público reclamar seus direitos.
De certa forma todos já nos acostumamos a uma cultura de represálias, o que é aterrador, principalmente se dependentes de serviços públicos essenciais como os de saúde, não havendo muitas alternativas e canais de reclamação ou reivindicação, restando o caminho da denúncia anônima ou do silêncio.
A outra face dessa moeda não reserva menos intransigência ou medo por parte de servidores que têm de conviver com más condições de trabalho, com a pressão diária, escassez de materiais, enfim, em muitos setores sob uma vigilância estatal punitiva, que não se coaduna com uma democracia integral.
Abre-se outra brecha nessa estrutura (e uma oportunidade jornalística), mas pouco explorada, pois levaria a questionamentos sobre o próprio sistema, a rede de financiamentos, a gestão pública da saúde e as relações trabalhistas etc. E parece que não há disposição nem tempo para tanto.
Assim, a precisão quase cirúrgica nesse tipo de reportagem acaba por revelar-se um recorte não propriamente incisivo, no sentido de alcançar camadas mais profundas da realidade social, mas, sim, uma estratégia conveniente (e conivente) a interesses que não são os de uma prestação de serviço público e do bom jornalismo. Talvez os seus produtores também precisem de um “kit” novo, enfim, trocar as lentes para um enfoque mais preciso, isento e honesto.
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Afonso Caramano é servidor público e escritor

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